Eu sei por que o pássaro canta na gaiola | Maya Angelou

Eu sei por que o pássaro canta na gaiola é a autobiografia da escritora Marguerite Ann Johnson ou simplesmente Maya Angelou, como se consagrou mundialmente nas artes cênicas, mas, sobretudo pelo engajamento na luta pela igualdade racial.

Um dos clássicos da literatura americana, Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, é uma aula de sobrevivência, persistência, autoconhecimento, trazendo como pano de fundo o contexto histórico da segregação racial nos EUA, contada por quem viveu.

Um livro que inspirou gerações de americanos negros, principalmente por gerar identificação imediata ao denotar fatos ocorridos com grande parte da população negra e pobre, como a exposição à violência física e sexual, a ausência de identificação com aquele país racista e até então sem perspectivas aos negros. Fatos esses, vividos, por exemplo, pela apresentadora Oprah Winfrey, que assina o emocionado prefácio da edição brasileira da Editora Astral Cultural (arrepiei, li várias vezes). A história de Angelou comove e inspira também os brancos, como o ex-presidente Bill Clinton e sua esposa Hillary, que participam do seu documentário. A propósito da obra, a edição brasileira traz ainda um depoimento admirado da filosofa brasileira Djamila Ribeiro.

Uma autobiografia impactante

As biografias e autobiografias trazem para o leitor o mesmo impacto de um filme, quando depois de viver fortes emoções a frase “baseado em fatos reais” aparece, e toda a sua percepção muda completamente.
Admiro mais ainda um escritor que desnuda sua vida, seus segredos e intimidade, para os milhões de leitores desconhecidos e nem sempre solidários. Maya faz muito mais do que apresentar sua vida, seu crescer, seus traumas e seus anseios. As minuciosas descrições do cotidiano afetado pelos resquícios da escravidão e posteriormente o racismo são o ponto alto da história. 

O que mais impressiona é a gentileza e a leveza de sua escrita, ao mesmo tempo simples e direta, forte e impactante, que desperta inúmeros sentimentos na leitura de uma mesma página. A infância e a adolescência de Maya refletem a vida da população negra em várias partes do mundo,  é cruel e impiedosa. Resistir, e, principalmente, sobreviver é a luta diária que já dura há séculos.

“Annie, minha diretriz é que prefiro enfiar a mão na boca de um cachorro do que na de um preto.” (pág.221)– O dentista que se recusou a atender uma criança com dor de dente.

Ao ler obras como O Mordomo da Casa Branca, Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, é que de fato damos a devida importância para a eleição do Obama e a dimensão de sua representatividade. Ao mesmo tempo, o retrocesso que significa Trump presidente. Por isso, leituras de escritas como Angelou, Conceição Evaristo, se fazem tão necessárias no contexto atual.

A linguagem poética de Angelou nos transporta para várias regiões dos EUA a partir de 1935, quando a pequena Maya e seu irmão Bailey vão morar com a avó paterna Momma na cidade de Stamps, Sul dos Estados Unidos, região onde os negros viveram (e ainda vivem) a face mais cruel da segregação racial.

Os pequenos passam pela educação rigorosa da avó e do tio Willie, enquanto dividem seu tempo na igreja para negros, na escola para negros, e no mercado de propriedade da avó, que tem o respeito da população local e uma condição financeira razoável. 

“Momma pretendia ensinar a Bailey e a mim a usar os caminhos da vida que ela e a geração dela e todos os Negros anteriores encontraram e achavam seguros. Ela não gostava da ideia de que se podia falar com os brancos sem botar a vida em risco. E sem dúvida não se podia falar com eles com insolência.” (pág.65)

A propósito, Momma é uma mulher admirável. Cada citação, cada cena em que ela aparecia me lembrava de alguma mulher forte que passou pela minha vida, seja parente ou não, que desperta o sentimento de gratidão: O que seria de nós sem elas?

À medida que Maya e Bailey vão crescendo, entre as idas e vindas de viver duas realidades: morar com a avó num estado escravagista ou com a mãe do outro lado do país, em um ambiente abolicionista, desbravando esses dois mundos com eles em momentos de aprendizado, de autoconhecimento, de amor, descobertas e com isso a adentramos também na cultura americana.

Contudo, essa dupla realidade se abre para Maya também de maneira cruel e violenta. Ela é estuprada aos 8 anos e divide esse momento monstruoso com o leitor, sem abrir mão de sua poesia. O contexto que levou ao estupro de Maya, e a forma como ela o descreveu, mexeu demais comigo, me perturbou, por ser um conjunto de fatores que levaram a uma cena corriqueira e que uma criança jamais desconfiaria do que poderia vir depois. Refleti muito sobre o debate atual do ensino de educação sexual nas escolas brasileiras, e o quanto isso se faz necessário, já que a maioria dos abusos infantis ocorre dentro de casa, despretensiosamente.

Angelou é uma observadora fiel e irrestrita que eternizou as nuances de uma infância que poderia ser a de qualquer criança pobre e mostrou que ser Negro (ela sempre inicia as palavras Negro ou Negra com a letra maiúscula) é também sinônimo de luta incessante, mas que há sim, a possibilidade de um triunfo. Resistir é preciso!

O livro é um manual de sobrevivência de uma criança (adolescente), que dialoga com qualquer pessoa de qualquer idade e traz fatos que precisamos (negros ou não) conhecer e combater para que nunca mais se repitam. É um livro histórico, e que ainda vai fazer sentido por muitos e muitos anos.

Mostrar a violência e o racismo pelos olhos de uma criança, utilizando o recurso poético da simplicidade do ponto de vista infantil, ao mesmo tempo impactante, no sentido soco no estômago, não é um privilégio apenas das americanas. Temos aqui, embora em menor quantidade que nos EUA, escritoras que, por meio de suas obras explicitaram suas infâncias nada glamorosas e tão igualmente chocantes: Conceição Evaristo com o livro Becos da Memória e Geni Guimarães em A cor da Ternura, são alguns dos exemplos.

O livro termina em um momento crucial na juventude de Maya e a curiosidade para saber mais sobre sua vida pode ser saciada no documentário “Maya Angelou, e ainda resisto” disponível na Netflix. E que mulher sensacional!

Eu agora sei por que o pássaro canta na gaiola

Os livros inspiram, entretém, ensinam e são capazes de dar luz para questões muitas vezes adormecidas em nosso interior. São os famosos gatilhos, que estão em evidência atualmente, como alertas para obras que tratam de temas fortes como relacionamento abusivo, estupro, violência doméstica e outros.

O título desta obra me intrigou demais e em toda leitura, fiquei tentando achar um sentido para ele, que se encaixasse na escolha de um título tão impactante. Conclui:

Quando era pequena, minha casa era cheia de animais de estimação. Um deles era uma Jandaia, a paixão da minha mãe, que dedicava horas pra conversar e cuidar dela, trocando água e colocando alpiste. Ela cantava toda vez que minha mãe chegava perto da gaiola. Das crianças da casa ela não dava muita atenção. Honestamente nunca a vi triste, por outro lado, na minha cabeça de criança achava lindo aquele pássaro aprisionado na gaiola. A Jandaia fazia parte da minha vida e só na adolescência, fase típica dos questionamentos, é que comecei a me perguntar se havia felicidade em estar presa ali… Várias vezes pensei em soltá-la… Só que ela era tão “mansa” que minha mãe até deixava a portinha da gaiola aberta enquanto enchia o comedouro. Enfim certo dia ela fugiu.

Minha mãe ficou tristíssima, e nenhum outro passarinho foi capaz de suprir a saudade da Jandaia. Até que um dia ela apareceu…. Pousou no varal e fez um escândalo. Todo mundo saiu para ver aquele pássaro familiar que durante muito tempo viveu preso na gaiola do meu quintal. Seu canto era diferente, parecia mais feliz. Como se cumprimentasse a todos, ela circulou mais um pouco e se foi.

Hoje eu sei que o canto na gaiola era apenas uma forma de não perder sua essência.

Leituras para aquecer o coração e abrir sua mente. 

Autismo: A diferença invisível 

Racismo: A cor da ternura 

Síndrome de Down: Não era você que eu esperava

Respeito às diferenças: Flicts 

Doenças mentais: Alucinadamente Feliz 

Ensinamentos leves sobre a vida: CEM 

No Resenhando você encontra resenhas de todos os gêneros literários.

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