Menina segura o vestido
Quando eu era pequena, todas as vezes que eu colocava um vestido meu avô Aristides, com sua vozinha rouca cantarolava pra mim:
“Menina, segura o vestido que é muito cumprido e arrasta no chão. Menina tome cuidado com seu namorado, que não tem coração…”♫♪
Essa canção bobinha entrava nos meus ouvidos de maneira divertida, como uma forma de brincar a vida. Lembro que enquanto ele cantava, eu rodava o máximo que conseguia com a saia do vestido, até ficar tonta. Ele é claro, abria aquele sorriso lindo capaz de derreter até as calotas polares, levando conforto até para os corações mais quebrados.
Hoje, já adulta, essa canção me surge como um mantra. Todas as vezes que me deparo com os trancos e barrancos da vida, mentalizo: “Menina, segura o vestido!”
É quase possível ouvir a sua vozinha rouca falando. E vou te contar viu, tenho segurado muito o vestido.
Às vezes fico aqui pensando com os meus botões, mas não é que aquele velhinho danado tinha razão. Como é que lá pelas tantas dos anos 90, quando eu ainda vivia a fase de acreditar em contos, ele já sabia que eu me depararia com muitas pessoas sem coração. Na real mesmo, parece que a moda hoje é não ter sentimentos. Que só consegue segurar o vestido, quem demonstra gostar menos. Que interesse bom, é o guardado a sete chaves pra ninguém saber.
A vida está engraçada, os valores se inverteram.
Coisas simples são coisas banais e o essencial é invisível aos olhos. Viver o real é démodé, e palavra démodé também é démodé. Legal agora é viver o simulacro. Não entendeu do que estou falando? Então, funciona mais ou menos assim: saímos para lugares vazios, com pessoas vazias e sentimentos vazios. Enchemos a cara com qualquer bebida que nos ajude a aumentar a euforia e afastar o sentimento de vazio, tiramos uma foto onde fingimos alegria extrema, escolhemos o melhor filtro do aplicativo, postamos e aguardamos que as pessoas vejam e que sintam inveja….. daquela simulação.
O velhinho era pra frente, não sabia nem ler.
Mas, tinha talento para sentir as pessoas. Sentir mais do que era dito.
Quando ele morreu eu tinha uns nove anos e mesmo sendo tão pequena, ele já sabia que talvez eu não estivesse preparada para essa simulação. Que eu precisaria de inteiros para me preencher e que se não tivesse intensidade, nada me completaria.
O resultado de toda essa equação, é que às vezes me vejo perdida, tentando me encaixar em alguma dessas turmas da simulação para alcançar pertencimento. Afinal, não quero ficar pra trás sozinha. Mas, sigo cantando baixinho a canção que ele me ensinou e torcendo para que no meio desse caminho tenha mais pessoas tão perdidas quanto eu.
Mesmo porque se precisar de força, já sabe né? “Menina, segura o vestido!”
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