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Mais que uma realidade, estar só era um dos meus passatempos prediletos quando criança. Girando o compasso do Universo, rebobino uma nova fascinação: a paixão pela escavação arqueológica. Com um mapa questionável e uma vontade intrépida, eu mergulhava nas profundezas do desconhecido, quase sempre em busca de sentido.
Tomei gosto em desenterrar absurdos, catalogar insignificâncias.
Ponderava sobre as mais curiosas conjecturas: e se eu utilizasse quatro pregadores para estender minha cama no varal? Qual a quantidade exata que o biscoito precisa absorver do café com leite para se transformar e preencher o copo por inteiro? Será que nós, humanos, podemos nos expandir mesmo se estivermos absorvidos de vazios? Décadas depois, um par de escavadores nos recordaria que ‘é sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar’.
E se, desafiando a norma dos adultos, eu usasse corajosamente o moletom com a mensagem eu te amo ao avesso? Seria uma forma de questionar o padrão de comportamento que muitas vezes era sem-paixão? Vesti a camisa, mas, naquele dia, fez-se solstício de inverno, a escuridão se instalou por mais de 24 horas e ninguém teve a chance de notar a minha pequena rebelião.
Quando bem nova, ganhei uma cachorrinha. E chamei de Leslie, pois gostava das cócegas no ouvido que só os estrangeirismos me causavam. Improvisei na varanda uma cama com minhas melhores roupas, já que ela não poderia dormir comigo. No dia seguinte, o sol me chacoalhou na cama como quem diz “anda que você já está atrasada para brincar de descobrir verdades”. A ausência preencheu espaços, Leslie havia sumido.
Vestido com moletom a rigor, um adulto não me poupou detalhes: a puppy dog se tornara presa dos lagartos que habitavam a mata localizada na parte posterior da casa, naquela cidade litorânea. A perda ganhou notas de brisa salgada. Réu primária na busca por incongruências, o sincericídio foi de encontro ao sabor adocicado das palavras que eu ansiava no cardápio das emoções. Estava em falta.
Prenome do gaélico Leasleach, Leslie significa “um jardim cinzento”, presságio sobre o futuro da escavação. Depois veio Capitu, cachorra grande demais para o meu tamanho e forte de menos para a leishmaniose. Um adulto ainda mais friorento atestou: você não sabe brincar de cuidar. Concordei, agora só queria saber de imaginar. Comecei a explorar sobre a vida, mais que pecado, buscava infâmias.
Foi aí que as cruzes à beira da estrada adquiriram contornos peculiares. Cada uma delas representava um corpo que descansava ali, sob o asfalto. Mas como alguém poderia visitar sua avó enterrada naquele lugar estreito e sem passeio?
O morto permanece morto mesmo quando sepultado na vertical? Quantas pessoas foram necessárias para enfiar o morto no buraco lá no alto do morro? Como o morto pode ter paz com tanto carro passando? É ofensivo chamar morto de morto?
Minhas explorações ficaram audaciosas, por exemplo, quanto tempo eu suportaria aprisionada dentro de mim mesma, sem chance de escapar? A máquina de lavar me forneceu quantidades generosas de espuma de sabão. Rosto coberto, fôlego perdido, visão comprometida. Éramos somente eu e eu. Por fora e por dentro. A resposta me pareceu simplória, isto é, com alguns segundos podemos lapidar eternidades.
Um parque de diversões recém-inaugurado na cidade foi o sítio arqueológico que me faltava. Lá, o mundo estava ao contrário e ninguém reparou que reparei. Os carrinhos de bate-bate desafiavam a gravidade; a maçã do amor derretia na boca; crocante, o algodão-doce mais parecia ser feito de lã; as crianças eram grandes, os adultos obedeciam; no céu não havia uma única estrela; contudo, centenas de corações iluminavam o chão; o dia era noite e a noite era igual ao dia.
Consciente, o Ministério da Saúde alertou sobre os perigos do consumo excessivo de açúcar. Acompanhada do desequilíbrio metabólico, me vi repentinamente tonta e, em meio ao turbilhão de sensações, acabei atropelando o bicho-papão. Descobri mais um absurdo para a coleção, um novo tipo de morte: ao contrário da morte morrida, existe a morte quando a alma vai, mas o corpo fica.
Constatei, chega de escavação.