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[Conto] – Atormentada

por Elis Rouse
4 minutos de leitura

Atormentada pelas notícias que viu na TV, ela montou um verdadeiro esquema de guerra no pequeno apartamento em que morava. A ameaça era iminente. Quem já pegou não aliviou: “é a pior coisa que pode acontecer com um ser humano”, dissera um parente. Pior, era pegar a doença e não conseguir atendimento médico na rede pública e particular, deu ontem na TV, o melhor hospital da cidade estava superlotado. O negócio está feio no Brasil. Totalmente entregue nas mãos do mosquito Aedes Aegypti.

Abominava com todas as suas forças ser picada pelo mosquito. Pior ainda era ter que experimentar as três doenças que ele transmitia Dengue, Zika e Chiku… alguma coisa de nome “impronunciável” e efeitos devastadores. Por isso, em todas as tomadas da casa, o mais moderno inseticida elétrico trabalhava incansável. Na propaganda do produto a promessa de manter a casa livre de todos os insetos era mantida a risca. Nas janelas instalou tela de proteção. Espalhadas pela casa, mas ao alcance das mãos, via-se raquetes elétricas e o famoso Baygon spray, pronto para exterminar qualquer ameaça com apenas uma borrifada. Aliás, a essência de Baygon era o cheiro predominante em todos os cômodos. Era o preço da proteção, justificava ela, a cada vez mais raras visitas. O namorado, certa vez, reclamou que sentiu o cheiro do inseticida no cabelo e nas roupas, mas ela não se importou. Afinal a proteção tinha um preço.

Já não tinha mais plantas em casa, tudo para garantir que nenhum pratinho acumulasse água. Dava descarga no vaso sanitário sempre que percebia a água muito parada. Nos ralos do banheiro, soda cáustica se acumulava nos cantos. Havia cercado o mosquito por todos os lados, não havia como penetrar no seu aconchego. Se bem que, raras foram as vezes em que viu um mosquito no seu apartamento, mas prevenir é melhor do que remediar. Morava no 8º andar e tinha ciência de que bicho não voava tão alto e aparentemente seus vizinhos eram cuidadosos. Mas sabe como é, não custa nada evitar.

E quem não previne… vira alvo fácil. Hoje, teve a notícia de que mais um amigo fora internado com dengue. A Júlia está com chiku… Rose teve zika. Paula teve zika e dengue. Todas as suas amigas ficaram doentes. Quase todos os seus parentes tiveram, têm ou estão suspeitas de alguma doença do Aedes. Amigos de amigos também não escaparam. Todos tiveram dores incessantes pelo corpo. Todos tiveram febre, dor de cabeça e coceiras na pele. Todos sofreram com a espera para receber atendimento médico. Todos, menos ela. Odiava sofrer, odiava sentir qualquer desconforto que fosse.

Para afastar o pensamento negativo, deu uma borrifada do inseticida no quarto onde já estava a horas desfrutando de um romance, daqueles que te prendem, te fazem esquecer de tudo, baixar a guarda. Ainda contemplava o romance quando ouviu os primeiros sinais do inimigo. Começou com um zumbido fraco, e foi aumentando o volume com a sua aproximação.  Ela sabia que era o alvo, afinal morava sozinha. O único sangue da casa, pulsava forte em suas veias, como um tambor num ritual de batalha, convocando para a luta.

Inconsciente tentou golpear o inimigo com um tapa na direção do zumbido. Assim mesmo sem estratégia. Não teve sorte, desperdiçou o golpe e ele sobreviveu.  Assustado, voava para longe dela. Saltou da cama e partiu em perseguição ao seu oponente que partia em retirada rumo a sala. Ela não perdeu tempo. No meio do caminho, apanhou a raquete elétrica. Lembrou-se das palavras do vendedor, aperte o botão e encoste a “tela” no alvo. Muito fácil, pensou ela. Ponderou se não seria injusto, ele estava em desvantagem, ela tinha uma espada e todo um arsenal de guerra. Enquanto ele estava desarmado. Dispensou a raquete elétrica, iria lutar de mãos limpas.

O mosquito fugia atordoado pelo golpe e pela cortina de inseticida da sala. Ela vinha atrás desesperada, descabelada tentando a todo custo alcançá-lo. Enquanto abria caminho, um rastro de destruição podia ser visto, cadeiras afastadas, um vaso estilhaçado, tapete embolado e chinelo despedaçado. Por fim conseguiu alcançar o mosquito que repousava cansado no alto da cortina da sala. Ela percebeu o estado do seu oponente e não perdeu tempo. Colocou uma cadeira rente a cortina e investiu pesado. O mosquito voou rumo a janela e ela foi junto. Atravessou a tela de proteção e conseguiu enfim alcançar o inseto. Na palma das mãos o sangue fresco de um alvo recente e os restos mortais do bicho.

Enquanto despencava de oito andares, o sentimento era de alegria, pois venceu o combate ao mosquito e passou por esta vida sem ser picada por ele.

No dia seguinte, sua morte foi noticiada como acidente. Ela não entrou para a estatística das mortes provocadas pelo Aedes.

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