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[Crônica] Seu José e a banca de revistas

por Redação LiteralmenteUAI
7 minutos de leitura

Seu José e a banca de revistas

Seu José já não sabia ao certo há quantos anos trabalhava como porteiro do grande e enigmático Edifício Central. Calculava que desde os tempos de sua mocidade era o responsável por ver o documento de cada visitante e cumprimentar cada morador e empregado que entrava e saía do enorme prédio.

Apesar de todo o tempo em que esteve ali, o que mais lhe chamava a atenção era a banca de revistas bonitinha que ficava na calçada em frente. De sua guarita era possível observar a banca entre os arbustos e flores do jardim e, ao longo dos anos, várias pessoas passaram por lá.

Observar os fregueses da banca era o passatempo favorito do Seu José, que secretamente traçava o perfil de quem ia e vinha.

Havia o advogado desempregado, que por não ter um escritório ficava na rua, fumando um cigarro atrás do outro, gastando o pouco dinheiro que tinha no bolso para bancar o vício em nicotina e, de quando em vez, descolava um potencial cliente que se assustava ao descobrir que deveria pagar por uma consulta jurídica, mas que nunca relutava em pagar um despachante para fazer o serviço sujo em seu nome.

Havia também o corretor de imóveis, com sua camisa social meio puída, que fazia pausas para o café de quinze em quinze minutos e nunca perdia a oportunidade de bater ponto em frente à banca, cumprimentando com euforia todo rosto conhecido, meio que para se sentir aceito, meio que para mostrar que era um cara popular.

As donas de casa que iam todos os dias ao mercado sempre passavam na banca para dar um alô à Sra. Madalena, a dona, esperando encontrar uma ou outra conhecida para colocar a fofoca em dia.

Aos domingos, senhores de boina e suspensório, provavelmente aposentados do serviço público, compravam seus jornais e fumavam seus cigarros, conversavam rapidamente uns com os outros sobre futebol ou sobre política, nunca se prolongando demais para não deixarem claro que de política e futebol pouco sabiam.

Algumas mulheres também apareciam, mas sobre elas o Seu José não conseguia imaginar muitas coisas. Talvez por serem sempre tão distintas e com padrões muito mais diversos. Umas compravam revistas, outras buscavam aqueles livros pequenos, de romance, e algumas apenas pediam o jornal do dia e iam embora, sem esperar pelo troco.

Na opinião do Seu José, as mulheres não possuíam padrões discerníveis como os homens. Talvez por ele mesmo ser um homem, sem muito conhecimento sobre as mulheres, era bem mais difícil criar personagens femininas a partir de suas observações.

Crianças e estudantes bem jovens compravam álbuns de figurinha e revistinhas em quadrinho, sempre acompanhados pelo sorriso encantador da senhora Madalena. Seu José era capaz de imaginar a felicidade de cada criança que abria um pacote com figurinha brilhante, e a decepção no olhar quando fitava uma repetida. Ele mesmo, vários anos antes, fora uma criança colecionadora de figurinhas e ávida leitora de gibis.

Com as mudanças ocorridas no mundo, Seu José observou uma alteração na banquinha, que passou a vender refrigerante e salgadinho, fazer xerox e até fotos 3X4 na hora. É que as pessoas estavam cada vez mais metidas na tal da internet, onde tinham certeza de poderem encontrar todas as notícias do mundo, muito antes delas saírem nas revistas e nos jornais impressos.

Seu José não sabia absolutamente nada a respeito da internet. Pode-se dizer que ele era um dos remanescentes mais idosos que envelheceram alheios aos avanços da tecnologia sem, com isso, sofrerem nenhuma consequência. Ele continuava trabalhando da mesma maneira de sempre, pois não houve acréscimo moderno ao seu posto de trabalho, com a exceção de algumas telas que gravavam as imagens das câmeras de segurança, e de um dos seis elevadores que foi reformado e não era mais dourado por dentro, com os botões mecânicos, mas sim prateado com um quadro luminoso.

Na opinião de Seu José, não havia grande novidade em tais alterações. Era apenas uma adaptação aos novos tempos, como as que ocorreram na banca de revistas.

Seu José continuava em sua guarita, dando oi e tchau para quem entrava e saía, recebendo e separando as correspondências de cada morador, e comprando seu jornal todos os dias quando chegava para trabalhar pela manhã, recebendo de troco o sorriso simpático da Sra. Madalena.

Alheio às alterações mais sutis à sua volta, Seu José apenas percebeu um declínio na quantidade de cartas que os moradores do edifício recebiam, e concluiu que as pessoas estavam cada vez mais distantes umas das outras. Ele não sabia nada a respeito de e-mails e redes sociais, mas constatou que as pessoas estavam ficando mais frias. Muitas passavam por sua guarita sem se darem conta de que ele estava lá dentro.

Os oi’s e tchau’s ficavam mais escassos a cada dia, e até mesmo os populares corretores de imóveis não frequentavam mais a rua, a calçada e a banca de revistas, como em outros tempos.

E nem havia se passado tanto tempo assim, na opinião de Seu José.

Este movimento o alarmou porque se preocupava com as pessoas que conhecia, e também com as que apenas observava de longe. É claro que o que Seu José não sabia era que as relações entre as pessoas se desenvolviam a todo vapor, tendo como intermediária a tela dos celulares e computadores.

Alheio à todas as formas de tecnologia, Seu José adoeceu de tristeza. A visão da banca de revistas já não era mais tão agradável como antigamente, sem poder utilizar as imagens das pessoas que iam e vinham, se cumprimentavam mesmo sem se conhecerem, e saiam sorrindo, cada uma em sua direção.

Para o Seu José, não havia mais cores na paisagem que via à sua frente, e por isso resolveu se aposentar. Ele tinha sorte, pois justamente a barreira que o impedia de enxergar as pessoas em razão do seu afastamento do mundo no qual elas viviam, era o que lhe permitia tomar esta decisão. Ele já tinha tempo de serviço suficiente para não ter mais que trabalhar e se tornar legitimamente um senhor aposentado.

Quando o Seu José se despediu da senhora Madalena, ele percebeu uma tristeza grave em seu olhar. Aquela tristeza o animou, pois ele estava com medo de que as pessoas não conseguissem mais demonstrar sentimentos umas pelas outras. Aquele gesto foi a constatação de que não havia nada de tão errado com o mundo que não fosse reversível. Ainda era possível existir relações verdadeiras. O vem e vai continuaria, com ou sem Seu José na portaria.

E com o passar do tempo as pessoas se deram conta da falta daquele velhinho em sua guarita, e a ausência dele despertou em cada uma delas uma profunda saudade, ainda que nem todas se dessem conta exatamente do que sentiam falta.

O texto é uma gentil colaboração da Marina Gomes Rocha França.Agradecemos imensamente a sua confiança. 

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