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BH 120 anos: O Mercado, o Saci e a Menina com Tentáculos

por Dexter Rodrigues
20 minutos de leitura

TIRE ESSAS MÃOS DAÍ! – Se um dia alguém porventura perguntasse qual a frase que mais ouvira na vida inteira, certamente a pequena Marina diria que foi isso o que mais escutou, e caso alguém questionasse quantas vezes, ela ficaria confusa com a quantidade de dedos em suas mãozinhas, já que ainda não sabia contá-los corretamente. O mais certo é que o dizem tão frequentemente por ser a menina uma espécie de monstrinho repleto de tentáculos no lugar das mãos, portanto quando alguém chamava-lhe a atenção por estar mexendo em algo, ela já estava a muito com a atenção voltada para o alvo seguinte e talvez refletindo sobre o próximo.

Marina adorava descobrir tudo, era desde cedo uma acumuladora, mas não de banalidades, Marina era uma acumuladora de curiosidade. Se a frase que mais ouvia era a ordem para tirar as mãos de tudo, a frase que mais dizia, sem sombra de dúvidas, era “Mas, por quê?”, e assim estendia-se pelo tempo que durasse a curta paciência dos adultos.

Apenas duas vezes por mês a garotinha engolia quase todas as perguntas, que desciam pela garganta como uma refeição carregada de alho, em que se sente o gosto daquilo pelo resto do dia. E ela ficava com o gosto de dúvida, mas muito satisfeita, pois essas eram as vezes em que seu pai a levava para passar a tarde no trabalho; um açougue que funcionava dentro do Mercado Central.

Ia a garotinha com seu vestidinho cor de sorvete de creme, segurando a mão de seu pai (imensa como a tampa do cesto de roupas) e pensando sempre que seu pai andava muito devagar porque ele pensava que ela não poderia acompanhar seus passos. Na verdade ela não poderia mesmo, mas gostava de se imaginar correndo para acompanhar as pegadas imaginárias que seu pai deixava ao dar seus largos passos quando desciam do ônibus no alto da Av. Paraná.

Nos primeiros meses, a menina ficava bem comportada em cima de um banquinho olhando curiosa para o cutelo brilhante tornando-se opaco, trabalhando na incessante tarefa de fatiar os pedaços de carne e fazendo o “fiu fiu” sendo amolado na pedra de afiar. Naquele lugar, Marina notou que seu pai não era assim tão grande perto das outras pessoas grandes, mas quando estavam só os dois, voltando pra casa no fim do dia, ela podia jurar que ele crescia, um, dois, tres mil metros, para a garota, os números ainda não eram importantes.

Durante todo o tempo passava alguém conhecido de seu pai e sempre diziam coisas do tipo: “Mas que gracinha a menina do Geraldo”, “Olha essas trancinhas”, “Que menina mais linda, quer se casar comigo?”. A esta última pergunta ela respondeu “Eu não vou me casar com adultos, você tem pelos na orelha!”. E foi assim que Marina conquistou a todos que passavam naquele corredor, dando respostas que crianças normais não dariam e vendo seu pai sorrir como ele não costumava sorrir em casa.

Com o tempo, a menina conheceu a maioria dos amigos de seu pai e, desde que não saísse de dentro do Mercado Central, ela poderia andar livremente para visitar seus novos amigos, que na verdade eram apenas os amigos de seu pai a quem ela tratava como se fossem seus próprios.

Com essa permissão de caminhar livremente pelos corredores do Mercado, Marina tornou-se uma menina ainda mais especial. A extrema curiosidade, somada a sua nova liberdade a fez, aos 6 anos, a pessoa que mais conhecia os corredores daquele lugar imenso.

Foto: Encantos Fotográficos

A maioria das pessoas ama o Mercado Central de Belo Horizonte, seja pela variedade de produtos, seja pela prosa, pelo fígado-com-jiló, pelo prazer de se perder. Mas se perder ali é o que a maioria das pessoas cita ao dizer que não consegue se orientar dentro do lugar, chegam pela entrada da Av. Amazonas e, ao retornar, pelo mesmíssimo caminho, encontram-se na Av. Augusto de Lima, numa absurda falta de lógica.

Marina, porém, andando duas vezes por mês, pelo tempo que desejasse, pôde conhecer profundamente o Mercado Central e dominar cada corredor. Ela saberia chegar à área dos queijos se orientando simplesmente pelo seu senso de direção, diferentemente dos outros, que se guiam pelo cheiro forte do produto.

Foi em uma dessas caminhadas que a menina achou ter visto uma sombra se mover agilmente para trás de um cesto de palha. Ela encarou por algum tempo o espaço iluminado que permanecia sem sombra alguma por um tempo. Então, virou-se para olhar as gaiolas de madeira penduradas na entrada da loja e pôde ver, novamente, pelo canto do olho esquerdo a mesma sombra se mover, e foi caminhando, arrastada pela sua curiosidade ilimitada, sem se virar, despistando suas intenções, até chegar à sombra, que tentou escapar novamente, mas que não conhecia a fama de Marina, a menina com as mãos mais rápidas que o pensamento.

Logo que tocou a sombra, a garota não sentiu a parede, como espera-se que aconteça ao se tocar uma sombra, seu bracinho afundou rapidamente e ela foi agarrada por uma mão que a segurou firmemente e puxou-a consigo, antes que pudesse imaginar a possibilidade de gritar.

Após os segundos sufocantes em que não conseguia respirar ou enxergar, sugada dentro de um túnel de borracha, a garota se viu dentro de uma livraria, no corredor de fantasia. A livraria estava vazia àquela hora, exceto pelos atendentes que conversavam distraídos perto do caixa ou liam absortos, por Marina e pelo homem de terno preto e gravata vermelha em pé na sua frente. Ela levantou os olhos assustada.

O que foi que você fez? perguntou, abaixando-se até que seus olhos castanhos ficassem à altura dos da menina.

Eu? Eu não fiz nada.

Você foi se meter no que não deveria, isso sim.

Mas como eu saberia que não deveria me meter se não havia aviso algum?

Se houvesse um aviso, você saberia ler?

Claro que sim! respondeu Marina indignada. Já tenho 6 anos.

Você é a filha do açougueiro, não é? até mesmo ele ouvira falar da fama da menina do Geraldo.

Sim, sou. disse levantando o queixo com orgulho. E você, quem é?

Eu não sei se deveria dizer isso para uma menina tão esperta, você iria contar para todo o mundo. ele levantou-se e começou a olhar alguns livros aleatoriamente na estante.

Sou uma excelente guardadora de segredos.

E corajosa?

Eu ainda não gritei, desde que chegamos aqui.

É verdade, acho que não há problema em te contar. ele abaixou-se novamente e fechou a mão em concha próximo ao ouvido da garota. Eu sou um Saci.

UM SACI?

Não grite, assim! o saci estava desconcertado, olhando para os lados procurando verificar se alguém ouvira a menina. Você prometeu!

Eu não sabia que você iria mentir para uma garotinha.

E eu não menti.

Você tem duas pernas e usa roupas de adulto e é um pouco moreno só, não é preto como o saci de verdade.

Aquele maldito Saci Pererê acabou mesmo com as chances de os humanos conhecerem nossa raça. ele sentou-se com as pernas cruzadas, Marina o copiou, embora permanecesse com os braços cruzados. Veja bem, os Sacis são uma raça bem grande, com três castas…

O que são castas?

São, como se fosse… o saci nunca precisara explicar isso para alguém. Pense assim, os sacis são todos cachorros, ai temos três raças diferentes, sacou?

Saquei!

Certo. Temos os Saci Pererê, que todo mundo acha que conhece, porque na verdade os pererês não são de pregar peças, eles são mais pacíficos, sabe? Os responsáveis por fazer toda a bagunça são os Saci Trique, como eu. explicou levanto a mão ao próprio peito, e a menina pôde notar um furo do tamanho de uma moedinha dourada de dez centavos. E tem o Saci Saçurá, essa é a única casta de sacis que tem a pele sempre branca e os olhos vermelhos, eles são muito, muito malvados, se os vir algum dia, não tente ser amiga deles.

E as pernas?

Quando estamos em nossa forma animal, um passarinho preto com a cabeça vermelha, que se chama pyrocephalo, temos apenas uma perna, que é o que nos diferencia do pyrocephalo comum, mas na forma humana, temos as duas pernas. O saci que você conhece perdeu sua perna lutando contra uma feiticeira-crocodilo.

Uma feit…

Eu adoraria ficar aqui o resto dos meus 77 anos te contando sobre nós, mas eu preciso te levar de volta, seu pai vai te procurar a qualquer momento.

A menina enrijeceu o corpo, sentindo um frio repentino e sentiu as meninas dos olhos prestes a se afogarem nas lágrimas que brotava.

O que foi?

Eu não quero voltar lá.

Ele soube que ela falava do reino das sombras.

É normal sentir medo, mas prometo que enquanto eu estiver te segurando, você não correrá perigo. Juro que será bem rápido.

A menina não deu sinal de redução no medo.

Olha, era para você ter se perdido nas trevas quando encostou na sombra e se desequilibrou, eu te segurei para poder te salvar, pode confiar em mim.

Aos poucos Marina recuperou a confiança e abraçou o saci trique que a levaria de volta para seu reino, o Mercado Central, ele não sentiu, mas no caminho, o abraço da garota se tornou mais frouxo e ela tocou sua gravata vermelha.

Pestinha! o trique disse ao bater a cabeça em uma gaiola na sessão de animais, fazendo um barulho metálico e assustando os bichos.

A menina não entendeu o que acontecera, e nem sentiu a gravata vermelha do saci se tornar quase líquida e deslizar pelo seu braço e pescoço, indo se alojar na forma de um lacinho de fita vermelho na ponta de uma de suas tranças.

Você me tapeou.

Eu? Como? a garota, de volta ao mercado, se recuperava da curta viagem pelo túnel compressor.

A minha gravata!

Eu não peguei gravata nenhuma.

Todo saci tem um gorro vermelho, um artefato mágico que assume diversas formas e é a fonte dos nossos poderes. Quando um humano toca o nosso gorro ele passa para o humano, olha ai essa fitinha de cabelo. Isso significa que você pode fazer um desejo e também que eu me torno seu, hmm, funcionário, até que você me liberte.

Marina não entendera absolutamente nada, pela expressão confusa em seu rosto.

Preciso voltar ao açougue, meu pai precisa me ver de tempos em tempos pra saber que estou bem.

Posso ir com você?

Claro. ela já começara a caminhar. Saci trique, o que você estava fazendo aqui?

Eu gosto de passar o tempo no Mercado mudando a posição dos corredores. É divertido ver a cara das pessoas quando estão em um lugar e quando tentam repetir o caminho ele não existe mais.

Marina sorriu para ele, os olhinhos brilhando. Novamente curiosa.

Você pode me ensinar?

Posso, claro. ele estava adorando ser o servo de uma garotinha curiosa. Vem comigo.

Mas e o papai?

Vamos chegar mais rápido.

Ela o acompanhou, até uma das esquinas entre os corredores.

Está vendo esta marca? apontou para um espaço em que não havia nada.

Não. Marina apertava os olhinhos tentando enxergar algo que definitivamente não estava ali.

E agora? perguntou o trique após tocar com a ponta dos dedos o laço vermelho que antes era seu gorro mágico.

Uau. Marina via um pequeno mapa em tinta verde que brilhava no lugar em que antes não havia nada.

Bem, agora você só precisa encontrar o corredor do açougue e fazer cócegas nele. – ele aguardou enquanto ela analisava o pequeno mapa. É este aqui, memorize-o, para sempre voltar para o seu pai quando precisar.

A menina fez o que o trique recomendou e coçou com a ponta dos dedos o corredorzinho que representava o que seu pai trabalhava. O desenho se contorceu como uma minhoca e ao olhar para o lado, após uma brisa leve, ela viu, no fim daquele corredor que não estava ali há um segundo, a luz clara do trabalho de seu pai.

Antes de se despedir do trique, ela tirou o lacinho do cabelo e estendeu-o para o trique.

Você sempre está aqui, eu sempre estou aqui, então espero que a gente se veja muitas vezes ainda.

Mas você não quer um saci só para você?

Você é só meu enquanto eu guardar seu segredo, não preciso que fique sem seus poderes, podemos ser amigos.

Você tem certeza?

Pegue! Papai vai brigar comigo se eu chegar com uma coisa que não estava comigo quando saí de lá, eu não deveria mexer tanto nas coisas.

O trique aceitou de bom grado o lacinho que se enroscou em seu braço e virou um relógio vermelho de ponteiros pretos.

Mas seu desejo ainda está guardado, quando decidir usá-lo eu vou estar por aqui, mudando os corredores de lugar para deixar as pessoas perdidas.

Ao se despedirem, Marina sentiu que não veria mais o saci trique, mas as marcas nas paredes ainda estavam ali, e a menina passou a ajudá-lo a mudar os corredores de lugar, fazendo com que o dobro de pessoas se perdesse ali, gastando mais tempo se apaixonando pelos complexos e mágicos corredores do Mercado Central.

Depois de Marina, ninguém nunca mais poderia dizer que conhecia o Mercado Central por inteiro. Belo Horizonte até poderia ser um ovo de tão pequena mas o Mercado era um universo inteiro, para cada pessoa um novo lugar, graças à pequena menina que mexia em tudo e ao saci trique, desconhecido da maioria das pessoas.

Especial BH 120 anos. Veja outros contos sobre a cidade aqui!

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