A estação do saber, que ninguém para pra ver
Acordar sangrando era rotina.
Desta vez, o sangue que escorria do ferimento recente na cabeça já havia secado. O local estava dolorido, mas como sempre a dor iria passar, sempre passa. O machucado é fruto da intolerância. “As pessoas estão cada vez mais ignorantes” foi o pensamento pós agressão. Uns culpam a crise, outros o estresse. Coisas que ele não sabia o que era. Outro dia viu na capa daquele jornal grande em destaque na banca, que a crise tinha deixado milhões de desempregados. Não sabia o que aquele número significava, mas tinha certeza de que era coisa ruim, a comida estava diminuindo, as ruas estavam ainda mais cheias. Leu naquele jornal vermelho pequeno que ladrões haviam culpado a crise para cometer os roubos. Também já fora acusado de ladrão, mas nunca culpou ninguém por isso.
Assim que os primeiros raios de sol começaram a aparecer, ele saiu do seu canto. Afinal, na Praça da Estação a movimentação começava cedo e não dava para relaxar. Dos jardins, já se via o vai e vem na estação Central do metrô. A grama estava úmida e quase não havia folhas ou sujeira. “Os amigos garis já passaram por aqui”, pensou. Não havia mais nada a ser feito. Pra quem vive das sobras, já era hora de correr atrás. Precisava sair dos jardins e o fez com muita dificuldade se apoiando na estátua da Ninfa, principal testemunha da sua agressão. Percebe que o corpo também dói e o sangue seco já começava a incomodar os olhos. O rastro de sangue percorreu o seu rosto parando na entrada do nariz. “Os guardas bem que podiam ligar a fonte, daria para pelo menos aliviar os olhos e voltar a enxergar direito”, pensou, mas seguiu em frente. As fontes deixavam a praça mais viva, alegre, ele gostava disso, gostava de viver ali. Mas, com a crise hídrica, elas quase nunca eram ligadas. E, olha a crise de novo.
Se encontrasse com essa crise pessoalmente, certeza que seria agredido por ela, porque até mesmo os companheiros de rua estavam mais nervosos ultimamente. Um deles o agrediu ontem, agora lembra nitidamente da paulada certeira e da disputa por um pedaço de pão achado no lixo. Eles não entendem o seu trabalho de limpar a praça. Não entendem que sem ele não haveria material orgânico reciclado e os esgotos ficariam mais sujos do que já são. Mas, no ringue das ruas não há espaço para reflexão. E agora não há espaço para amizade. Não há espaço para apreciar as belezas da praça. Talvez nem haja mais praça. Pensava seriamente em sair dali, mas nenhuma praça de BH é igual a da Estação. Os ipês aqui são mais floridos. A iluminação é mais brilhante e nenhuma delas tem aquela vibração gostosa que a chegada do trem proporcionava no seu corpo. Nenhuma delas tem um Museu bonito, mas tão bonito que ninguém sabe o que era museu. Dizem que é de Artes e Ofícios, gostava dali. “Aquilo sim era arte de verdade, era coisa da nossa gente”, uma vez ouviu alguém dizer e concordou.
Gostava daquele povo bonito que frequentava o Centro de Referência da Juventude. Dos sons e das músicas que saiam de lá. Já ficou horas observando da janela, se esqueceu de fazer sua obrigação e até de comer, ouvindo umas histórias bonitas sobre igualdade, que para ele nunca existirá se as pessoas continuarem assim, intolerantes, palavra que aprendeu no CRJ e que agora faz todo sentido. Gostava também daquele povo alegre que entrava no Cine 104 e dos cartazes nas paredes que sempre chamam sua atenção. Outro dia quase foi atropelado quando observava o convite para um filme, mas não aceitou, porque, assim como aqueles apressados que pegavam o metrô, ele também não tinha tempo. Gostava do vai e vem daquela estação, as pessoas ali sempre lhe deixavam alguma migalha. Os frequentadores dos bares também eram legais, eles sempre contribuíam para o seu trabalho e sustento.
Gostava dos mistérios da Praça da Estação. Queria falar para as pessoas que na praça tem passagens secretas. Túneis que te levam a outras dimensões, válvulas de escape em dias de perseguição. Queria contar para as pessoas que a praça é uma estação do saber, Sim! Na estação Central, você pode pegar livros de graça no projeto “Leve um livro”. Pouca gente sabe que lá tem uma livraria que só vende livros de escritores e personagens negros, valorizando a cultura afro do mundo todo. As pessoas não sabem que a biblioteca do CRJ é recheada de livros para todos os gostos. A pessoas não sabem que lá tem um pronto-socorro. Sim! Um pronto-socorro para socorrer os livros que sofrem com o desgaste de uma longa jornada. As pessoas não sabem, talvez nunca saberão, porque a crise não as deixa viver. O dia a dia atribulado as impede de sonhar, de imaginar. E a ignorância não as deixa apreciar as coisas boas da vida. Elas nunca ouviriam o que ele tem pra dizer. Nunca parariam para dar atenção a alguém assim. O que eles fazem é tentar eliminá-lo como se ele fosse a crise na vida delas. E por isso, ele tem certeza que se tem um mercado que não está em crise é o das ratoeiras.
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