A (des)Ordem dos Sacis
Os homens têm dificuldade em aceitar o fantástico naturalmente, depois que passam dos quinze anos suas mentes se fecham para o que parece irreal, e é por isso que as criaturas que habitavam os sonhos, desejos e medos infantis conseguem se misturar as pessoas comuns com tanta facilidade, sem serem reconhecidas. Além de, em boa parte dos casos, a imagem que os humanos carregam de determinadas criaturas ser tão estereotipada que eles não reconheceriam a criatura mesmo que ela lhes entregasse um registro oficial do governo que regulamenta as criaturas sobrenaturais (órgão que não existe, à propósito). Um exemplo ilustrativo o suficiente para deixar a situação clara: se alguém disser “Saci Pererê” as pessoas irão, automaticamente, abrir uma portinha na memória e invocar a imagem de um menino de pele escura, gorro vermelho e cachimbo, saltando em sua única perna. Bem, esse Saci Pererê existe, embora esteja prestes a deixar o mundo, mas todos os outros Sacis têm as duas pernas e a cor da pele varia bastante, também.
Era pouco mais de uma da madrugada quando um ser que se passava perfeitamente por um homem, muito alto e magro andava demasiado displicente, com as duas mãos nos bolsos da calça skinny, ocultando o relógio de pulseira vermelha de um lado e fazendo um barulho irritante com um molho de chaves no outro. A madrugada silenciosa de segunda-feira fazia o som metálico parecer mais alto do que realmente era, mas ele estava interpretando um papel distraído, de quem chega em algum lugar por acaso.
— Não era mais fácil vir pelas sombras? — perguntou uma voz que surgiu aparentemente do nada.
— É que eu gosto de… — o primeiro começou a responder, mas viu o par de olhos vermelhos que incandescia na sombra e imediatamente se arrependeu e desfez o sorriso que se formara em sua face, e também parou o barulho com as chaves. Mudou então o rumo da resposta, visivelmente arrependido — Me desculpe, eu não deveria mesmo chamar atenção.
— Você é um maldito Saci Trique. — comentou impaciente o de olhos vermelhos materializando o restante do corpo, vestido de maneira elegante, destoando completamente do estilo alternativo do outro. — Vocês conseguem fazer barulho mesmo viajando pelas trevas que omitem qualquer ruído.
— Tem razão, somos mesmo uma casta de casos perdidos. — o trique respondeu com um tom fingido, o humor era um traço inerente à casta de sacis trique. — Mas passaremos bastante tempo juntos, pelo visto. Você poderia me ensinar a sutileza dos sacis saçurá.
— Se tudo der certo, trique, você não chega vivo ao fim da missão.
— E qual é a missão, afinal? — perguntou o saci trique enquanto passava a mão em seus cabelos rebeldes e desgrenhados. Como se um furacão os tivesse assoprado para todos os lados. Há algum tempo usar os cabelos bagunçados se tornara uma moda entre os sacis.
— Não irei repetir, então vamos esperar o outro chegar.
Os dois aguardaram o terceiro, pois sabiam que a vida dos sacis e as missões realizadas por eles eram cabalísticas em alguns aspectos.
O número sete, por exemplo, estava sempre presente: eles passavam sete meses dentro de bambus, era o período de “gestação”, depois passavam sete anos aprendendo sobre sua casta e sobre todo o tipo de magia, mesmo as que não poderiam dominar, e aprendiam sobre os humanos e todas as criaturas com as quais poderiam esbarrar durante a vida. Então eram designados para proteger determinado local, usando o conhecimento que obtiveram durante o treinamento. Uma situação no mínimo curiosa: criaturas das sombras, geralmente ligadas ao mal, cuidando de espaços como guardiões, preservando ambientes naturais.
Assim eles viviam até os 70 anos, a não ser em raros casos em que eles podiam viver alguns anos a mais.
Outro número importante para os sacis é o número três. O número perfeito, o número do acerto. Várias culturas e criaturas pelo mundo compreendiam a grandiosidade dos eventos que envolviam trindades e mesmo sem querer acabavam utilizando-a. Portanto, para garantirem que as missões tivessem considerável chance de dar certo com esse artifício, a Ordem dos Sacis sempre enviava três membros para suas missões.
Veja que até os desordeiros por natureza, acabam precisando de uma Ordem.
A Ordem dos Sacis era uma espécie de elite que definia as missões a serem executadas, enquanto não recebia nenhuma missão, ou era convidado a se juntar à Ordem, os sacis estavam livres para fazer o que quisessem, desde que mantivessem suas áreas devidamente protegidas. Mas como isso era simples e entediante, muitos acabavam saindo por ai, aprontando principalmente com humanos.
Sempre havia o líder da Ordem dos Sacis e era ele quem determinava as diretrizes da ordem até que ele morresse e também era quem definia o tipo de brincadeiras que poderiam fazer com os humanos. As lideranças sempre assumiam o mesmo tom, de acordo com a sua casta: os pererês muito mais tranquilos permitiam brincadeiras que não prejudicassem a vida de ninguém, como substituir feijão por pedras, amarrar a crina de cavalos (de costas e um nó apenas, pois os sacis são obrigados a desfazer os nós que estão à sua frente, invariavelmente) portanto eram muito mais pacatos os períodos de liderança de um pererê; os triques eram os senhores do pequeno caos, geralmente aprontavam com os humanos e faziam a culpa cair nos pererês, uma liderança de um saci trique era sempre muito confusa, eles assustavam animais para que invadissem fazendas (o hábito causou um confronto por cinquenta anos sem trégua com os curupiras, que se encerrou pela substituição da liderança por um saci saçurá); os saçurás, de olhos vermelho-cereja translúcidos, são a casta que faz os sacis serem considerados criaturas das trevas, embora tenham as mesmas habilidades das outras castas, os saçurás são maliciosos e astutos, agentes que incentivam desavenças e tornam suas vítimas confusas no fim das contas, por não saberem pelo que estão brigando. Por isso geralmente os saçurás se envolvem em questões políticas e diplomáticas.
— Cada um escolhe um meio diferente de aparecer. — comentou o Trique olhando à distância. — Nota-se a sincronia da nossa panelinha, não é?
O saçurá revirou os olhos e girou a cabeça na direção de onde podia ouvir o farfalhar do bater de asas do pyrocefalo que se aproximava graciosamente. A ave era comum à princípio, as penas pretas e a cabeça vermelho-berrante, e apenas um pé. Poderia ser uma deficiência qualquer, mas em sua forma animal, a de ave, todos os sacis tinham apenas uma perna.
O pássaro abriu as asas para um rasante mas antes de tocar o chão transformou-se em uma fumaça escura e tocou o chão já com os pés humanos, usando sapatênis.
— Boa noite. Me atrasei muito? — ele forçou um sorriso quando se aproximou.
— Deu tempo das pedras voltarem a ser feijão. — o trique respondeu fazendo referência ao truque mais comum dos sacis pererê (trocar feijão por pedras), julgando que muito tempo se passara, embora na realidade não tivesse corrido nem cinco minutos desde sua chegada.
— Não importa. — cortou secamente o saçurá. — Vamos direto ao ponto..
— Ora, aqui no meio da rua? — o trique baixou o tom de voz a um sussurro
— Onde mais seria?
— Tudo bem, se você insiste… — o saci trique disse conformando-se, levando as mãos ao zíper da calça.
— Mas que merda você pensa que está fazendo, seu idiota?
— Você quem disse, ué! — o trique parecia realmente confuso.
— Disse para irmos direto ao ponto. — o saci de olhos vermelhos estava visivelmente indignado com a situação.
— Ponto? Você disse ponto? Tem absoluta certeza? — zombou. — Bem, faz muito mais sentido que seja ponto mesmo, eu devo ter compreendido algo errado.
O que aconteceu a seguir foi tão rápido que o pererê demorou um tempo para captar a gravidade da cena.
O saçurá se movera com velocidade anormal e em um instante o trique estava de joelhos, um pequeno redemoinho girava entre a mão do saci saçurá e a boca do provocador de confusão, o trique, o redemoinho tinha fragmentos de sangue e saliva. O cruel saci estava removendo o ar dos pulmões do trique de maneira dolorosa. Sua gravata vermelha se expandia e contraía de maneira descompassada.
— Agora me escute, com bastante atenção, eu não irei tolerar sua estupidez no caminho da minha missão, ouviu bem? Basta. — o saçurá, descontrolado, cuspia enquanto falava. — Se alguém tiver uma piada para contar no final disso tudo serei eu, e não você, seu merdinha.
O redemoinho se dissipou e o trique tossia cuspindo sangue no chão, apoiando-se nas mãos, engasgado com a saliva e com o ar que tornava dolorosamente a entrar em seus pulmões para ser distribuído para o restante do corpo.
— E a missão, afinal, qual é? — o pererê questionou mantendo-se ligeiramente afastado do saçurá, seu relógio vermelho vibrava discretamente em seu pulso, pronto para protegê-lo caso necessário.
— Certo. — o saci de olhos rubros estava calmo, como se nada do que acabara de fazer fosse relevante. — A Ordem nos mandou para uma missão de resgate. Há 63 anos um de nós foi capturado, possivelmente naquele truque da peneira que os humanos inventaram para prender os sacis mais incautos. O que a Ordem acredita é que o caçador morreu pouco depois, antes de fazer o acordo de ter um desejo realizado em troca de sua liberdade. Já que esse pererê nunca retornou para reportar à ordem o que havia acontecido.
— Então a nossa missão é resgatar de uma garrafa das trevas um saci que deve estar a poucos dias de morrer? — perguntou o pererê, ligeiramente confuso.
— Verdade, é um esforço sem sentido. — concordou o trique, que se levantara recomposto da cena de cólera do saçurá. — Mal lhe restam meses de vida, se muito.
— Eu ainda não terminei. — rebateu o saçurá. — Acontece que este saci pererê é provavelmente o único que tem posse de um conhecimento que estará perdido assim que ele morrer. O mestre que o ensinou morreu dias depois de tê-lo feito. Se este saci morre também, perderemos uma técnica que pode ser de vital importância para nós.
— E que conhecimento é esse? — o trique ainda estava processando as informações na cabeça.
— Idiota. Se soubéssemos precisaríamos resgatar um moribundo aprisionado? — retrucou impaciente o saçurá.
— Ah, bem observado, como sempre. — o trique elogiou tentando ocultar o tom zombeteiro que as palavras carregavam.
— Então é isso, senhores. — o saci saçurá disse ignorando a provocação, ajeitando o nó na gravata, verificando se o elegante vinco que formava um nó bem dado estava presente. — Temos três dias para encontrá-lo ou pode ser tarde demais.
— Já temos um ponto de partida ou a cidade toda é o nosso limite? — o pererê tentava buscar possibilidades para reduzir o perímetro da busca e para planejar de modo eficiente. Afinal era membro da casta mais ordeira, mesmo que não fossem líderes naturais.
— Temos duas pessoas com grandes chances de ser nosso alvo. A primeira é um colecionador de garrafas.
— Os humanos acumulam mesmo qualquer porcaria. — o trique interrompeu sorridente. — Incrível.
— Sim, não tem como entender as manias deles. — o saci de olhos vermelhos concordou pela primeira vez, causando espanto nos outros dois. — Eles devem imaginar que carregam a aura dos lugares por meio de objetos que estão impregnados com lembranças. Os humanos não compreendem nem mesmo que a aura não pode ser reproduzida.
— Mas eles deixam essas relíquias impregnadas com manitu. — o pererê entrou em defesa da raça humana. — É inegável.
— Os humanos nem sabem mais o que é manitu, meu amigo. São patéticos. — o saçurá deu o assunto por encerrado. — A outra pessoa é a neta do homem que capturou o saci. Ela mora na mesma casa e deve manter o espólio intacto. É para lá que vocês vão.
— Que nós iremos? — o trique apontou para si e para o pererê, que estava igualmente intrigado.
— Sim, temos exatos três dias e dois lugares para verificar. Caso o dono da garrafa tenha conhecimento do que está dentro dela precisamos nos precaver para um resgate sem complicações. — os olhos carmim correram de um saci ao outro com desdém. — E eu me recuso a estar no grupo do trique, portanto, vocês vão até a casa da herdeira e eu irei ao colecionador.
— Você pensa em tudo mesmo. — o trique aproximou-se para dar um tapinha fingido no ombro do saçurá, abraçando-o de lado.
Assim, com tudo brevemente planejado, o trio se desfez. O pererê saiu primeiro. Girando no calcanhar encontrou uma brisa que passava por perto e tomou-a como impulso para o pequeno redemoinho em que se transformou para sair dali.
— Sacis pererê sempre fazem isso. — comentou o trique olhando para o vento levantando poeira. — A alternativa que mais apreciam é essa, justamente a mais fácil de capturar um saci.
— Por isso quase sempre que um saci é capturado, a vítima é um desses idiotas. — concordou o saçurá, olhando o outro lado da rua, dando um suspiro. — Bem, boa caçada para vocês.
Quando olhou novamente para o lugar onde estava o saci trique, ele percebeu que estava sozinho, não notou a saída dele, e não soube dizer por quanto tempo falou para ninguém. O trique havia deslizado pela mesma sombra de onde o saçurá viera mais cedo naquela noite.
— Bem, um trique sabe ser silencioso e discreto, quando convém, afinal. Tenho de admitir. — disse para si mesmo enquanto entrava na mesmíssima sombra com um sorriso maldoso e os olhos não mais vibravam com o rubor de antes: estavam castanho escuros.
Logo que o dia amanheceu. o trique e o pererê já se encontravam no fim de uma rua inclinada, ladeada por prédios residenciais e depósitos de carga e descarga. Algumas residências mais antigas, destacavam-se com seus contornos e pintura desbotada, contra o cinza plano dos muros altos dos galpões. A casa que procuravam estava no quarteirão seguinte e eles iriam à pé, para não chamar atenção para si e seus poderes. Por sorte, a rua estava vazia. O movimento geralmente era de caminhões entrando e saindo dos depósitos. Portanto, além da dupla de sacis, apenas um catador passava com sua pequena carroça de madeira, fazendo um barulho extremamente irritante, batendo uma batuta metálica em uma garrafa, avisando aos moradores que estava passando, recolhendo garrafas velhas e latinhas.
O carroceiro vinha na direção contrária à que o pererê o trique caminhavam, portanto, os acompanhou por todo o caminho, tornando-se mais estridente e irritante à medida que avançavam no percurso. Quando se cruzaram, o catador deu um sorriso para os dois, cumprimentando-os com dentes faltando, porém, de maneira sincera. Seguiu então com o barulho, caminhando lentamente, com cuidado pois a descida do morro era um perigo para um homem carregando tantas garrafas de vidro. Logo que chegaram à entrada da casa indicada pelo saçurá, na madrugada que há pouco ficara para trás, o pererê tocou a campainha e aguardou, olhando rapidamente para o relógio vermelho em seu pulso esquerdo.
Era muito cedo ainda, mas não demorou muito para que a maçaneta da porta girasse e pelo portão de grades azuis os sacis pudessem vislumbrar a mulher que viera ver quem estava chamando à essa hora.
— Ah, olá. — ela disse olhando para os lados ligeiramente confusa. — Pensei que fosse o padeiro. Ele às vezes vem até aqui oferecer pães frescos pela manhã. Mas, em que posso ajudá-los?
— Bem, sentimos muito incomodar tão cedo. — respondeu o trique retirando os óculos escuros com a borda vermelha e guardando-o na gola da camisa. — Mas viemos para tratar um assunto sobre o antigo dono deste imóvel.
— O meu avô? — a moça aproximava-se cautelosamente do portão, os longos cabelos castanhos jogados sobre o ombro direito, os braços cruzados, protegendo-se do frio matinal e apertando os olhos para a primeira espiada no dia que chegara há poucas horas. — E qual o assunto?
— Sim, seu avô. — o trique dizia enquanto se aproximava do portão, tomando o espaço que o pererê ocupara até então. — Suspeitamos que ele tenha lhe deixado de herança um objeto…
— De colecionador. — interveio o pererê, percebendo que o trique logo se perderia nas palavras. — Um que muito nos interessa.
— De fato meu avô era um homem muito… extravagante. — ela disse lembrando-se da imagem que tinha de seu avô, fazendo uma viagem rápida no tempo, e vendo em sua mente uma fotografia daquele homem grisalho, cheio de manias e de coisas velhas que ele dizia ter muito mistério envolvido. — Então, podemos conversar aqui dentro, acabo de passar um café.
Eles agradeceram o convite e aguardaram que ela abrisse o portão e permitisse sua entrada na casa.
Por dentro, a casa não era tão desbotada quanto por fora. A sala ampla com a qual os sacis se depararam era bem decorada, combinando os móveis contemporâneos e confortáveis com itens do início do século passado: escrivaninha, aparador, um baú.
— Vocês podem se sentar, enquanto eu busco o café, sim?
— Ah, obrigado. — o pererê disse sentando-se de maneira educada, acomodando-se confortavelmente no canto do sofá, com a mão entre as pernas fechadas.
O trique sentou-se na poltrona, cruzando as pernas, claramente tentando irritar a mulher que os atendera, pois em geral as poltronas são um lugar cativo de um dos moradores da casa.
— Aqui está. — ela apareceu novamente poucos minutos depois, carregando uma garrafa térmica em uma das mãos e um pratinho de biscoitos em outra. Em uma segunda ida à cozinha ela retornou com três xícaras coloridas. — Vocês ainda não disseram seus nomes,
— Jonas. — o trique se apresentou de imediato, estendendo a mão para um aperto que foi correspondido de imediato. — E ele é o Hugo.
Não eram nomes reais, claro. Os sacis aprendem a se comunicar com os humanos, mas nunca recebem um nome como é comum entre seres humanos. Alguns até o recebem, mas são impronunciáveis fora das sombras, é como um código de barras para ser usado quando um saci importante precisa ser localizado ou está em missão que envolve viagens pelas trevas. Porém, quase sempre são tratados pelo nome de sua casta.
— Certo, me chamo Lúcia. — ela bebericou o café que acabara de servir, havia um sorriso discreto em seu rosto. — Mas, então. O que vocês procuram, exatamente?
— Eu não sei se existe uma maneira de te dizer que faça sentido. — confessou o pererê, que falara pouco desde que chegara.
— Não saberemos se você não me disser, não é? — ela sorriu por cima da xícara que ela segurava com as duas mãos e fumegava levemente.
— De fato. — concordou o saci estendendo o braço para alcançar mais um biscoito. — Seu avô, não sei se você tem conhecimento, tinha hábitos incomuns para um morador de cidade grande. Ele carregava algumas crenças caipiras consigo.
— Claro que sei. — respondeu Lúcia, animada, lembrando-se mais uma vez de seu avô. Explicando em seguida que isso era a marca registrada dele, que todos se divertiam com suas histórias dos tempos em que era criança na roça, com seus bisavós.
— Exatamente. — interveio o trique. — Ocorre que algumas pessoas ainda preservam grande estima por objetos que contém histórias como essas.
— Sei. — respondeu Lúcia, refletindo. — E vocês se interessam por alguma peça do acervo que ele me deixou?
— Direto ao ponto! — disse o trique, animado. Segurando a risada, enquanto lembrava-se do problema que a palavra “ponto” havia gerado com o saçurá.
— O que estão procurando, exatamente?
— Existe uma lenda que fala sobre uma criatura negra, de uma perna só, cachimbo e um gorro vermelho… — iniciou o pererê, mas foi interrompido pela mulher.
— Saci Pererê.
— Isso! — ele animou-se e prosseguiu a história. — Pois bem, conta-se que os sacis caminham por ai em forma de redemoinhos de poeira e folhas e que para capturá-los, deve-se jogar uma peneira sobre ele, pois as cruzes os impede de fugir.
— E então meter uma garrafa escura para que ele possa naturalmente fugir para as trevas. Então fechar a garrafa com uma rolha em que uma cruz esteja grafada.
— Como você sabe dessas coisas? — o inocente pererê estava intrigado pelo segundo corte que Lúcia fizera em sua narrativa.
— Eu era apaixonada pelo Sítio e por Monteiro Lobato, quando criança. — explicou simplesmente. — Não entendo porque você estranha tanto meu conhecimento. Sempre achei que qualquer um nesse país tinha conhecimento ou mera noção dessas histórias.
O pererê ficou sem palavras. Ignorara o conhecimento básico dos humanos sobre os sacis e agora levantara suspeitas sobre sua identidade.
— É que geralmente as pessoas se esquecem disso quando passam da adolescência. — interveio o trique, tentando desviar o foco do pererê desconcertado. — E contando a história toda, ficaria mais fácil para você nos ajudar, caso possa.
— Tem razão, Jonas. — Lúcia chamou-o pelo nome falso. — Eu mesmo me esqueço desses contos, às vezes.
— Tá vendo só? — o trique sorriu apontando os dois dedos indicadores para Lúcia, enquanto olhava para o pererê e lhe piscava o olho discretamente.
Lá fora, o som do homem retornando o caminho tinindo a garrafa com o bastão metálico aumentava gradativamente.
— Mas acho que me lembrei rapidamente, desta vez, por que os ítens deste “ritual” estão bem ali. — Lúcia apontou para o armário de madeira escura com portas de vidro, onde podia-se ver uma peneira de palha, não muito grande, e o que fez os olhos dos dois sacis brilharem: uma garrafa negra, lustrosa como uma pérola fechada com uma rolha de cortiça.
— Podemos dar uma olhada?
Atendendo ao pedido do trique, Lúcia deixou sua xícara ao lado do pratinho de biscoitos, então levantou-se e passou por eles caminhando até o armário e pegando primeiramente a peneira, que trouxe e entregou ao pererê por trás do sofá, ao retornar, segurou cuidadosamente a garrafa, imaginando seu valor e levou-a de volta ao seu lugar. Sentando-se, estendeu o braço e depositou-a sobre a mesinha de centro, recuperando sua xícara e retornando à sua posição inicial.
— Ai está.
— Posso? — o trique apontou timidamente para a garrafa.
— Fique à vontade. — consentiu Lúcia.
O trique levantou-se de sua poltrona e alcançou a garrafa, que segurou com as duas mãos. Voltando ao seu lugar ele quase podia sentir ondas de triunfo ecoarem de seu corpo. Sorrindo para o recipiente, virando-o contra a luz da janela, tentando, inutilmente, ver algo lá dentro.
Lá fora o som de metal batendo em vidro finalmente desaparecera.
— Afinal, o que vocês procuram é isso? — Lúcia chegara sem que o trique notasse e retirou gentilmente a garrafa das mãos do saci de cabelos bagunçados.
— Sim. — confirmou o trique.
— Vocês por acaso acreditam que haja algo real nisso aqui?
— Você não consegue sentir uma onda mística envolvendo esta garrafa? — questionou o trique.
— Na verdade eu não senti nada, Jonas. — Lúcia virou-se para o pererê. — E quanto à você, Hugo?
— O que tem eu? — o pererê olhava fixamente para a garrafa e não prestara atenção ao que os outros dois conversavam e esquecera-se de seu nome falso por alguns segundos.
— Você acredita nessa história? — ela explicou. — Acredita que há algo aqui dentro?
— Eu, bem. — o pererê estava confuso. Não sabia se deveria afirmar ou parecer incrédulo, notou o olhar encorajador do trique e finalmente respondeu. — Não posso dizer que não acredito, pois ainda não vi nada que comprove, não é? E também não posso dizer que acredito pelo mesmo motivo.
— Desce do muro. — Lúcia sorriu.
Antes que o pererê pudesse responder o trique pegou agilmente a garrafa e levantou-se, indo para longe de Lúcia.
— Vamos ver então, ora. — ele estendeu a mão até a rolha.
Antes que ele abrisse, uma corrente de ar entrou pela janela aberta dando um golpe fraco, que serviu para balançar tecidos e espalhar farelos de biscoito e também serviu para colocar um pouco de tensão no ambiente.
Lúcia olhava impressionada tentando ver algo, mas não havia o que ver. Os dois sacis olhavam para os lados procurando por algo também, mas não captaram coisa alguma.
— Na verdade. — o trique mudara repentinamente de ideia. — Seu avô por acaso deixou algum objeto vermelho junto à garrafa? Algo estranho ou um acessório de moda. Eles teriam valor imensurável caso fosse encontrados junto às garrafas.
— Você fala do gorro vermelho que os sacis usam?
— Sim, um gorro. Mas teoricamente poderia ser qualquer coisa vermelha.
— Sinto muito. — ela deu um sorrisinho sem graça. — Isso é tudo o que tenho relacionado às lendas do folclore que contam sobre o saci pererê.
— Tudo bem. — o trique não desanimara. — Se houver um saci aqui dentro ele pode ter mantido o seu gorro vermelho.
— Você está levando isso tudo muito à sério. — Lúcia sentia-se bem animada com a situação. Era como se voltasse a ser jovem, relembrando tempos em que acreditava na possibilidade de o sobrenatural ser real.
— Estou mesmo. — ele não conseguia se conter direito. — Sinto que poderia molhar as calças de tanta ansiedade.
— Que horror!
— Que mal educado. — o pererê estava envergonhado ali. — Desculpe o meu amigo, ele às vezes passa dos limites.
— Conversa! — o trique fez um aceno com a mão. — Vocês dois estão do mesmo jeito.
— Então abra logo a garrafa. — Lúcia juntou as palmas das mãos próximo à boca, estava realmente empolgada.
— Lá vai, então!
O trique precisou fazer força para retirar a rolha, além do cuidado que fazia para não quebrar a garrafa no esforço. Mas finalmente conseguiu abri-la, largou a rolha no chão e depositou o recipiente escuro no chão, aguardando que algo acontecesse, tal qual um gênio da lâmpada saindo de sua prisão mágica.
Nada aconteceu.
O pererê aproximou-se e recolheu a garrafa. Examinou-a por fora, olhou por dentro, como se fosse uma luneta, mas não encontrou coisa alguma. Ele queria entrar na garrafa para tentar ajudar o saci de sua casta que deveria estar muito fraco ali dentro, mas não ousaria perto de um humano comum.
— E então? — Lúcia aguardava impaciente por um veredito.
— Aparentemente não há nada aqui para nós. — informou o saci pererê virando a boca da garrafa das trevas para baixo numa tentativa de forçar algo a sair. Ele chegou a sacudir algumas vezes, sem obter sucesso, no entanto.
O trique, desanimado, sentou-se no sofá, ocupando o lugar onde antes o saci pererê estivera, e começando a girar a peneira, pensando no próximo passo que dariam, sobre como o saci saçurá se sentiria satisfeito ao ver que eles haviam fracassado.
Da cozinha um som estranho chamou a atenção de todos. Era uma risada abafada, que se tornou rapidamente estridente.
O trio na sala nem precisou ir atrás da fonte da estranha risada. Pela porta da cozinha, saiu a figura responsável pelo barulho. O velhote que passara coletando garrafas na rua segurava a barriga e ria descontroladamente.
— Como foi que você entrou aqui? — Perguntou Lúcia completamente assustada pela invasão em sua casa.
— Quem é você? — o saci pererê caminhou até que ficasse posicionado como um escudo humano, à frente de Lúcia, que apoiou a mão em seu ombro esquerdo.
— Vocês precisavam ver a cara de vocês quando não encontraram nada na garrafa das trevas. — o homem tossia tentando recuperar o fôlego.
— Como é que você sabe sobre a garrafa das trevas? — o trique levantou-se de súbito.
— Eu me disfarcei mais cedo, queria estar perto quando acontecesse. — começou a explicar, finalmente, parando de rir. — Mas antes, eu mandei os dois virem pra cá.
Antes que perguntassem algo ele se enfiou na sombra que o armário projetava para o lado e saiu em seguida, com seus inconfundíveis olhos vermelho rubi, repletos de maldade, apesar do sorriso divertido que iluminava seu rosto.
— Você? — o trique o reconhecera imediatamente como o terceiro membro da missão, o saçurá que os reunira. — Mas não faz o menor sentido. A nossa missão.
— Eu te falei, trique “Se alguém tiver uma piada para contar no final disso tudo serei eu, e não você, seu merdinha”. Não se lembra? Pois bem, há algum tempo eu percebi que podemos manipular as trevas do mesmo jeito que outros seres podem manipular a luz, criando ilusões, então me disfarcei pra testar as técnicas.
Lúcia, estremecera ao ver a transformação do homem, então deslizou a mão pelo braço do pererê, buscando por segurança.
O saçurá então se enfiou novamente na sombra e retornou como um irmão do saci trique. Eram muito parecidos, embora o que acabara de aparecer fosse uma cabeça mais alto e tivesse o nariz um tanto mais achatado.
— Surpresa! — o novo saci trique disse abrindo os braços. — Vocês, dois sacis, caíram na pegadinha de um outro saci! Isso é incrível.
— Mas você me paga. — o trique enganado ficou com raiva. — Não vai ficar por isso mesmo.
O novo saci pensou em escapar rapidamente e transformou-se no mesmo redemoinho que havia entrado pela janela há alguns minutos. Seu maior erro.
O trique estava muito próximo à peneira que supostamente teria capturado um saci há muitos anos e rapidamente lançou-se por cima do sofá segurando-a, conseguindo prender o saci embaixo das cruzes formadas pelo utensilio.
— Rápido! A garrafa.
O pererê, animado com a reviravolta e desejando participar, prontamente levou a garrafa até o trique.
— Espera! — o pererê voltou correndo até o ponto onde a rolha havia sido deixada no chão, recolhendo-a levou-a para seu comparsa. — Aqui está!
— Boa!
O saci trique então enfiou a garrafa para baixo da peneira e rapidamente tampou a garrafa com a rolha. Levantando-a à altura dos olhos. Contra a luz, desta vez, ele pôde ver o saci capturado lá dentro, batendo no vidro e gritando palavrões que não poderiam ser ouvidos.
— Agora acho que você gostaria de se sentar, Lúcia. — o trique disse virando-se para ela. — Te explicaremos tudo assim que eu te preparar um chá. tudo bem?
Sem esperar por resposta o trique saiu da sala carregando a garrafa consigo. Já na cozinha, ele tirou seu próprio pacote de ervas do bolso. Afinal, era a especialidade dos sacis, preparar chás mágicos com funções diversas. A desse seria calmante.
Quando voltou para a sala, pouco tempo depois, o pererê estava de braços cruzados olhando pela janela e foi sentar-se quando viu que o chá havia chegado.
— Beba um pouco, Lúcia. — sugeriu o pererê. — Vai te fazer bem.
— Não sei ser menos direto para te explicar o que houve aqui. — iniciou o trique enquanto ela bebericava o chá. — A verdade é que nós dois. — ele apontou para si e para o pererê. — Somos…
— São sacis. — ela sentia-se calma quando interrompeu-o. — Eu já sabia.
— Desculpe. — o saci olhou desconfiado para ela. — Como poderia saber?
— Vocês não ocultaram o buraco nas mãos. Eu os reconheci assim que os vi no portão
Era verdade. Todos os sacis têm as mãos furadas. Geralmente eles brincam de passar uma brasa por esse buraco, de uma mão para outra, antes de acender um cachimbo.
— Mas só isso nos denunciou? — o trique estava interessado em compreender como seu disfarce havia sido descoberto por um humano. — Temos as duas pernas e vocês, humanos, costumam dizer que temos uma perna só.
— Não se esqueça de quem foi meu avô. — ela abandonou a xícara ao lado das outras sobre a mesa. — Ele acumulou muita coisa sobre vocês. Sei, por exemplo, que vocês só têm uma perna quando estão na forma de aves. Mas de fato pensava que era invencionice da cabeça do vô. Até que os vi na minha frente, então quando mencionaram o meu avô eu liguei os furos nas mãos ao relógio dele e aos seus óculos. Foi tudo bem lógico, menos quando convidei dois estranhos para um café. — Lúcia reconheceu o risco que correra.
— Interessante. — o trique levantou-se. — Bem, então nosso trabalho está encerrado, iremos embora e não nos veremos mais. Foi um prazer.
— E se eu contar sobre vocês?
— Pode contar. — o pererê disse sorrindo. — Ninguém iria acreditar.
— A verdade é tão absurda que escolhemos viver na ignorância. — ela lembrou-se da frase que ouviu há muito tempo.
— Exatamente.
— E o que farão com o que prenderam ali? — ela apontou para a garrafa. — Gostaria de poder estudá-lo.
— Sinto muito. — disse o trique. — Tenho um castigo para esse bonitão. Espero que você não se importe.
— Não, na verdade eu não me importo. — ela sorriu mostrando o brinco de vinil vermelho que reluzia solitário em sua orelha e estivera escondido pelo cabelo. — Eu já tenho o meu saci.
— Você o que?
— Meu gorro! — gritou o pererê desesperado procurando o relógio vermelho que estivera em seu pulso durante quase todo o tempo em que estivera ali. — Você o roubou!
— Sim. Estava disfarçado de relógio e quando o outro saci apareceu eu o toquei no seu braço e ele deslizou naturalmente para a minha mão. — ela sorria. — Suponho que agora você seja o meu servo.
— Suponho que agora você tenha se dado muito mal, meu amigo. — o trique comentou depois de uma risada satisfeita. — Mas espero que você permita que ele ao menos esteja comigo quando for dar o castigo para o nosso amiguinho aqui.
— Certamente. — cedeu Lúcia, sem refletir muito, era o efeito do chá. — O que farão com ele?
— Venha conosco! Eu te mostro.
Ela aceitou o convite e levantou-se segurando a mão do trique. Ele a levou até a sombra do armário seguido pelo pererê.
— Não importa o que aconteça, fique de olhos fechados e não largue minha mão.
— Tudo bem. — ela concordou, sentindo-se animada com as possibilidades que se abriam em sua mente.
O trio caminhou e foi engolido pela sombra. Segundos depois apareceram dentro de um galpão de reciclagem, onde um catador de verdade preparava seu carrinho para sair batendo seu próprio bastão de ferro por ai, colhendo garrafas e latas de alumínio.
O trique foi até ele e entregou-o a garrafa, dizendo-o que era uma garrafa muito especial, e que lhe daria muita sorte se ele acreditasse nisso.
O homem agradeceu e fez a troca imediatamente. Sentindo o som da nova garrafa que recebera, saiu com o espírito renovado para as ruas.
— Você mentiu para ele? — Lúcia sentia-se mal pelo homem.
— Não. — ele defendeu-se segurando a mão da moça novamente. — Eu disse que se ele acreditasse, se tivesse fé, que ele poderia ter muita sorte. É de fé que os deuses e os seres mágicos se alimentam, se ele oferecer um pouco desta fé, ele vai receber algo em troca.
— Espero que como seu servo eu possa ajudar a aumentar essa fé dos humanos, Lúcia. Se deixarem de acreditar, em breve a nossa já pequena comunidade mágica irá desaparecer do Brasil, dominada pela crença em outras culturas que não a nossa.
— Iremos dar um jeito, Hugo.
— Não me chame de Hugo, me chame de saci. Não sou um animal de estimação.
Os três riram do comentário. E depois riram ao imaginar o desespero do trique aprisionado tendo que ouvir o dia inteiro, por muito tempo, o terrível som do metal contra o vidro.
O saci que foi pregar uma grande peça mas acabou sendo pego. Por muito tempo ele seria motivo de piada em sua casta, por ora ele só precisava se preocupar com o tilintar da garrafa que o prendia.
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