Foto: Luiz Alfredo/O Cruzeiro

Livro-reportagem e a arte de informar

A necessidade de ir além das notícias e ter um enriquecimento maior dos detalhes de um relato fez com que jornalistas buscassem novas maneiras de informar além dos textos curtos objetivos do dia a dia. E foi assim que surgiu o livro-reportagem.  

Como forma de atrair o leitor, foram criadas as reportagens, com textos mais elaborados e títulos mais atraentes. A falta de espaço na imprensa convencional facilitou o desenvolvimento dessas reportagens em livros, formato jornalístico, que une jornalismo e literatura e traz notícias bem investigadas em textos literários.

Com a ascensão do livro-jornalismo, o jornalismo literário tem ganhado cada vez mais espaço. E um dos principais objetivos do gênero é mostrar ao leitor, através de uma maior contextualização da história e dos detalhes dos fatos, uma outra realidade que vai além daquela que a simples notícia diária oferece.

Origem

As grandes reportagens em livros começaram a surgir no século XX, época em que o jornalismo era preenchido com literatura, artigos e ensaios editoriais. Com o avanço tecnológico, os jornais eram menos factuais e mais autorais, interpretativo e muitas vezes opinativo, e isso aproximou o jornalismo da literatura.

John Reed tornou-se o pioneiro deste formato jornalístico. Suas obras, México Rebelde (1914) e Dez Dias que Abalaram o Mundo (1919), são exemplos de reportagens em livro.

Já John Hersey publicou, em 1946, através da revista The New Yorker, a obra “Hiroshima”. O relato escrito em seis semanas, com a riqueza dos detalhes trágicos dos efeitos da bomba atômica no Japão, foi publicado de uma só vez, usando toda a edição da revista e sendo proibido em diversos locais, tamanha a repercussão da reportagem. Posteriormente, foi publicado também em livro-reportagem.

Em 1965, Truman Capote surgiu com “A Sangue Frio”, obra que o próprio autor classificou como “romance não-ficcional”. O livro se tratava de um brutal assassinato de uma família de fazendeiros do Kansas por dois supostos ladrões, os quais Capote entrevistou durante muito tempo e trouxe os detalhes em sua obra. O livro de Capote foi aclamado pelo público, servindo de inspiração para diversos jornalistas-escritores americanos a partir dos anos 60.

Surgiram em seguida Hunter Thompson, que publicou “Hell’s Angels” em 1966; Normam Mailer com “Os Exércitos da Noite”, publicado em 1968 e também Tom Wolfe com “O Teste do Ácido do Refresco Elétrico”. Em 1969, Gay Talese publica “O Reino e o Poder – Uma história do New York Times” e, em 1971, lança “Honrados Mafiosos”, obra que contava a história de uma das mais importantes organizações criminosas do mundo.

O livro-reportagem no Brasil

O livro-reportagem não é tão tradicional no Brasil quanto é nos Estados Unidos. Exemplo disso é o surgimento de uma das primeiras obras, reconhecida posteriormente como livro-reportagem, que surgiu antes mesmo do gênero se tornar aclamado nos EUA. Euclides da Cunha, em “Os Sertões”, alcançou repercussão nacional ao retratar a Guerra de Canudos com extrema riqueza técnica e sensibilidade em suas descrições. Na ocasião, Euclides presenciou a guerra como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo.

A difusão do livro-reportagem começou a ser impulsionada, principalmente, a partir da década de 40 com o escritor e jornalista brasileiro Rubem Braga. Em 1945, Braga publicou uma coletânea de crônicas intitulada “Com a FEB na Itália”. A obra tratava-se de relatos sobre a Segunda Guerra Mundial que o jornalista escreveu como correspondente do Diário Carioca. Joel Silveira também publicou “O Inverno da Guerra”, contendo relatos da época em que foi escalado para cobrir a Segunda Guerra Mundial pelo Diário dos Associados no terrível inverno de 1944.

O fim da ditadura no início dos anos 80, propiciou que grandes jornalistas também fizessem relatos fiéis daquilo que presenciaram nos anos anteriores como Zuenir Ventura, em 1968, com “O Ano Que Não Terminou” e Elio Gaspari, com “Ilusões Armadas”, publicado em 2002.

Também há outros renomados jornalistas, como Fernando Morais, Gilberto Dimenstein, Caco Barcellos, Ricardo Kotscho e Ruy Castro, que dedicaram-se à produção de livros-reportagem no País.

Características

O livro-reportagem tem o papel de informar, explicar e orientar, através do gênero informativo e interpretativo. Um de seus principais objetivos é oferecer ao leitor uma contextualização maior dos fatos e do contexto histórico, mostrando uma realidade que vai além daquela que a notícia apresentou em algum outro veículo de comunicação.

Há diversas definições entre livros-reportagem, como perfil, que evidencia o lado humano de uma personalidade pública ou de uma personagem; depoimento que reconstitui um acontecimento a partir da visão de um ou mais personagens; ou história, que repercute e se propõe a investigar e contextualizar fatos históricos em geral; entre outros modelos.

Informação

Através de muita investigação e estrutura literária, diversos jornalistas no Brasil transformaram notícias corriqueiras em grandes histórias. Por meio dessas reportagens que foram publicadas em livros, o jornalismo ganhou ar artístico e humano. 

O jornalista e escritor Caco Barcellos, por exemplo, autor de diversas obras do jornalismo investigativo, consegue aliar informação, investigação utilizando recursos literários em seu livro-reportagem-denúncia “Rota 66 – A História da polícia que Mata”.

Mesmo fugindo das limitações abordadas em matérias de veículos convencionais como vemos diariamente, a obra que une informação, literatura e jornalismo investigativo é capaz de relatar através de uma linguagem agradável, mesmo se tratando de uma denúncia policial. 

A arte de informar através do livro-reportagem permite que seus autores contem histórias, cumprindo assim seu papel social no jornalismo, ao mesmo tempo em que garantem também, aos seus leitores, o prazer de ler uma narrativa bem construída do ponto de vista literário.

 TOP 10 de livros-reportagem impressionantes: 

Corta pra mim | Marcelo Rezende: O jornalista foi um dos grandes ícones do jornalismo brasileiro, sobretudo do jornalismo considerado “popular”.  No livro Corta pra mim, que, aliás, traz o seu bordão mais marcante, Marcelo apresenta algumas histórias marcantes de sua carreira de mais de 40 anos de cobertura jornalística a frente de grandes reportagens para o Fantástico, Linha Direta e Jornal Nacional, como O Caso Favela Naval; e entrevistas com criminosos que tiveram grande repercussão na imprensa, como o Maníaco do Parque. A riqueza detalhes e o primor de um contador de histórias nato faz deste livro uma obra prima para relembrar a história do Brasil por meio do jornalismo investigativo. Marcelo Rezende não tinha superior em jornalismo, nunca fez faculdade, mas se consagrou pelo talento como jornalista investigativo e âncora. Faleceu em 2017, vítima de câncer.

 

Aquilo que resta de nós | Igor Patrick: Aquilo que resta de nós é o primeiro livro do jornalista Igor Patrick, que já passou por grandes veículos de comunicação do Brasil. Neste livro ele expõe relatos da dura, cruel e impiedosa realidade de mulheres violentadas por soldados da Tropa de Paz da ONU, enviados para ajudar na reconstrução do Haiti após o terremoto de 2010. Igor contextualiza o leitor através de fatos e dados, os motivos que levaram as forças de paz ao país. Apresenta os costumes e tradições de um povo sofrido, sem perspectiva, que luta pela sobrevivência diária. E, os chocantes relatos das vidas de Martine, Jacquendia, Régine e Fabiana, seus sonhos da infância, ações que as levaram a conviver com os militares, a violência do abuso, o conflito após o ato e a devastação vinda com as consequências. Muito mais que um livro-reportagem, Aquilo que resta de nós é o boletim de ocorrência de uma denúncia grave. Veja a resenha completa

 

Holocausto Brasileiro | Daniela Arbex: O livro é o desdobramento de uma série de reportagens, produzidas pela nossa autora do mês de fevereiro, a jornalista Daniela Arbex, para o jornal Tribuna de Minas. A história foi tão impactante que virou um livro-reportagem. Nele, a jornalista apresenta por meio de relatos, fotos e documentos oficiais, várias histórias de pessoas que, consideradas “loucas” foram enviadas ao maior hospício do Brasil, o Hospital Colônia, na cidade de Barbacena. O que se descobre é que o Colônia era uma fachada para atrocidades, um depósito de pessoas indesejadas na sociedade, que vitimou mais 60 mil pessoas. “Holocausto Brasileiro” é sobre pessoas que foram torturadas, espancadas, violentadas, dormiam ao relento e morriam de frio. Comiam ratos, bebiam água de esgoto e urina. É sobre como a sociedade, autoridades, políticos, funcionários, entidades religiosas e por que não as pessoas comuns, deixaram que essas barbaridades acontecessem com seres humanos, seus filhos, filhas que tiveram seu destino traçado ao embarcarem no “trem de doido”, que cortava as montanhas de Minas. Veja a resenha completa

 

A máquina da lama | Roberto Saviano: É um dos principais jornalistas e escritores italianos. Por expor a atuação da máfia italiana na máquina pública, ele vive sob um forte esquema de segurança. Em A máquina da lama Saviano foca nos esquemas de corrupção de grupos de mafiosos. Cita compra de votos para garantir políticos aliados, tráfico de drogas, e a tragédia da escola construída com areia do mar, que veio abaixo após um terremoto, vitimando inocentes. Qualquer semelhança com o Brasil é mera coincidência, até porque não temos máfia por aqui, certo?

 

 

O Mordomo da Casa Branca | Wil Haygood: Fenômeno de bilheteria e crítica, o filme O Mordomo da Casa Branca fez história ao apresentar ao mundo o mordomo negro que trabalhou durante mais de três décadas no centro do poder do mundo, servindo fielmente a oito presidentes americanos. A história de Eugene Allen foi originalmente publicada em um artigo do Jornal Washington Post pelo jornalista e escritor Wil Haygood três dias após a eleição histórica de Barack Obama. O significado do que essa vitória representou para os negros americanos, o contexto histórico da luta pelos direitos civis, representatividade negra no cinema em face à realidade vivida nas ruas, o caminho percorrido para se chegar a uma produção hollywoodiana com um elenco majoritariamente negro na adaptação de O Mordomo da Casa Branca e os bastidores da produção, são alguns dos temas que o livro apresenta. Confira o comparativo entre o livro e o livro.

 

 

Os Sertões | Euclides Da Cunha: Os Sertões é uma grande reportagem sobre a Guerra de Canudos (1896-1897), combate travado entre o exército brasileiro e um movimento popular liderado pela figura profética de Antônio Conselheiro, na cidade de Canudos, na Bahia. Com armas rústicas e combatentes despreparados, a força de Antônio Conselheiro foi dizimada, mas antes resistiu a duas investidas militares e matou cerca de 5 mil soldados. Enviado especial do jornal O Estado de S. Paulo, Euclides da Cunha relata no livro tudo o que viu, além de contextualizar os motivos aparentes do conflito. A obra foi publicada em 1902.

 

 

 

A Sangue Frio | Truman Capote: Considerado o marco inicial do jornalismo literário, a obra foi Publicada em 1967 e relata a história de como o autor se envolveu com um homem preso que assassinou uma família no Estado do Kansas, nos Estados Unidos, para contar a história do crime de todos os ângulos possíveis.

 

 

 

 

 

Rota 66 | Caco Barcellos: Livro que lançou o repórter Caco Barcellos no mercado editorial, Rota 66 exigiu uma investigação de mais de um ano para identificar cerca de 4.200 pessoas mortas pela ROTA (Rondas Ostensivas Tobias Aguiar), maior batalhão da polícia militar e o mais “matador” do país. Publicado em 1992, o livro traz nomes e detalhes de assassinatos cometidos por oficiais da ROTA contra pessoas inocentes ou apenas suspeitas. Por causa da repercussão do livro entre os militares, Caco precisou ser enviado pela Rede Globo ao exterior, onde viveu alguns anos até que a poeira abaixasse.

 

 

 

Hiroshima | John Hersey: A bomba atômica matou 100 mil pessoas na cidade japonesa de Hiroshima, em agosto de 1945. Um ano depois, a reportagem de John Hersey reconstituía o dia da explosão a partir do depoimento de seis sobreviventes. O texto tomava a edição inteira da revista The New Yorker, uma das mais importantes publicações semanais dos Estados Unidos. A narrativa de Hersey dava rosto à catástrofe da bomba: o horror tinha nome, idade e sexo, e se tornou livro. Quarenta anos mais tarde, Hersey voltou a Hiroshima e escreveu o último capítulo da história dos hibakushas – as pessoas atingidas pelos efeitos da bomba. O trabalho do repórter alcançou uma repercussão extraordinária.

 

 

 

Estação Carandiru | Drauzio Varella: Em 1992, a Polícia Militar do Estado de São Paulo entrou no presídio do Carandiru para conter uma rebelião e matou 111 detentos. Três anos antes, o médico Drauzio Varella começou um trabalho voluntário na prisão para conscientizar os internos dos riscos e perigos da AIDS, porém, acabou ajudando a socorrer as mais bizarras emergências e ouviu dos pacientes histórias sobre a organização e contrato social do presídio. É uma grande oportunidade para entender uma história de outra ótica. Em vez de ver os detentos como criminosos, o livro os apresenta como os humanos que o são.

 

 

Diz aí? Gosta de livro-reportagem? Qual seu preferido? 

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