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UM GRANDE DIA

por Redação LiteralmenteUAI
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UM GRANDE DIA

Hoje faço trinta e cinco anos. É um grande dia! Acho que sou das poucas mulheres que adoram aniversários. Sempre faço uma festa.

Festinhas pequenas, só para a família, festas médias quando a “grana” ajuda e grandes festas para as datas marcantes: 18 anos, 30 anos e a próxima será aos 40. Já planejei até o convite: Helena convida: 40 anos, turbinada de fábrica, air bag duplo, ótimo estado de conservação, só para colecionadores ou pessoas de fino trato.

Hoje faço trinta e cinco. Acordo cedo e vou direto para o espelho. Procuro as marcas do tempo. Algumas rugas, sulcos mais evidentes, uns fios brancos (tenho que pintar). Aquele pneuzinho que disfarço com calça mais alta e a barriguinha de cesárea (quando chegar aos 40 farei uma plástica). Bumbum… Bem razoável. Seios… Hum… Lembrei! Teste do lápis. Ponho o lápis debaixo do seio, se o lápis não cair, a coisa tá feia. O lápis não caiu! Empurro o tórax para frente, o lápis continua lá. Coloco as duas mãos na cintura e forço. Finalmente o lápis cai. Respiro fundo, satisfeita. OK! Trinta e cinco e tudo em cima.

Passo as mãos pelo seio e sinto alguma coisa diferente. Não deve ser nada. Por via das dúvidas apalpo novamente. Parece que tem alguma coisa aqui. Aperto, levanto o braço, abaixo o braço. Como é que é mesmo que vi na revista? Lembrei. Deito e com a outra mão apalpo o seio. Meu coração está disparado. Realmente ali, bem no meio, sinto uma coisa redonda, uns dois centímetros. Enorme!!! Aperto de novo. A coisa se move. Meu Deus é câncer! Vou morrer jovem! O médico vai tirar minha mama. Meu cabelo vai cair. Vou morrer jovem, careca e magra. Bom, magra menos mal. Rio deste pensamento ridículo. 

Penso em ligar para meu marido. Acho que vou ligar para minha melhor amiga. Não, vou ligar para minha mãe (melhor não, ela vai ficar muito preocupada). Ligo para minha médica.

– Dra. Regina está com paciente. Ela te retorna assim que possível.

– Fala que é uma questão de vida ou morte.

Ela me liga no final da manhã.  Não fiz mais nada a não ser pensar em quem vai criar meus filhos. Minha mãe esta velha. Meu marido está novo (com certeza o desgraçado vai arrumar outra antes do meu corpo esfriar, não quero meus filhos criados com madrasta). Vou entregar para as madrinhas. Melhor não. O telefone toca.

– Dra. Regina, estou com câncer e pelo tamanho tenho pouco tempo de vida.

– Deixe de falar besteira Helena. Você está dois meses atrasada com seus exames preventivos, mas câncer terminal?

– É verdade. Achei um caroço enorme no meu seio.

– Na sua idade Helena não deve ser nada grave. Venha  amanhã  que vou examina-la.

– Dra., amanhã já morri, nem precisa mais.

– Tá bom. Vem hoje à tarde.

            Chego uma hora antes da hora marcada. Ela me atende vinte minutos depois. Vi todas as revistas mais de uma vez. Bebi oito copos de água. Olhei vinte vezes se o celular tinha tocado.

– Helena, tem mesmo um pequeno nódulo. É móvel, bem delimitado. Não parece suspeito. Vamos fazer uma mamografia e um ultrassom.

– Mamografia não. Pelo amor de Deus! Dizem que dói demais e que depois os peitos ficam caídos de tanto que aperta.

– Helena… Você uma pessoa instruída, inteligente, falar uma bobagem destas? A mamografia é o único exame que pode detectar o câncer de mama antes de aparecer um nódulo. Deve ser feita pela primeira vez aos trinta e cinco anos e depois dos quarenta, todo ano.

Ligo para a clínica que a Doutora Regina me indicou.

– Vamos marcar para a próxima semana.

– A Dra. Regina pediu urgência. Disse que meu caso é muito grave.

– Venha então hoje cinco horas. Mas é encaixe, você vai ter que esperar.

Não quero esperar nada. Já fui quatro vezes à recepcionista e são cinco e cinco. Preencho um questionário. Quantos filhos? Última menstruação?Casos de câncer de mama na família? Penso: só o meu.

Fico me lembrando do e-mail que recebi. Exercícios para se preparar para a primeira mamografia. Primeiro exercício: Abra a geladeira e coloque um peito entre o batente da porta e a parte fixa, feche a porta sobre ele e aperte com força. Apoiando seu corpo sobre a porta conseguira fazer mais pressão. Aguente nesta posição. Segundo Exercício: Dirija-se à sua garagem às três horas da madrugada, que é quando a temperatura do chão de cimento está perfeita, fique sem blusa e se deite comodamente no chão com um peito sob a roda traseira do carro. Peça à uma amiga ou a um familiar que empurre lentamente o carro para trás, até que seu peito esteja completamente achatado debaixo da roda. Terceiro Exercício: Pegue duas prateleiras de metal e deixe no congelador durante a noite toda…

– D. Helena. Pode entrar, por favor.

Suo frio. Suo quente. Acho que estou fedendo porque não se pode usar desodorante.

– Boa tarde. Sou a Dra. Paula, radiologista. Vou fazer sua mamografia e seu ultrassom. Tudo bem?

Que médica cara de pau! Tudo mal! Tudo péssimo! Hoje é meu aniversário. Estou com câncer. Tenho dois filhos para deixar, não sei com quem.

– Tem mesmo um nódulo bem pequeno, móvel. Não deve ser nada grave. Talvez um cisto.

Olho para ela pela primeira vez. Só pode ser mentira. Sei que vou morrer.

– Fique tranquila. A técnica já vem fazer seu exame.

Começa a mamografia. Aperta um pouco, mas não é como dizem. É bem rápido. Estou com vergonha dos meus comentários. Vou matar quem me mandou aquele e-mail.

Vou depois para o ultrassom. Deito na sala escura. A médica olha o tempo todo para tela e não diz nada. Deve estar pensando… Tão nova… Que destino cruel.

– D. Helena. Pode ficar tranquila é só um cisto.

– Cisto?

– Um nódulo de água. Ele pode sumir, continuar assim e se crescer podemos esvazia-lo com uma agulha fina, com se fosse um balão.

 – Dra., tem certeza que não é câncer?

– Absoluta!

Saio pela rua muito feliz. Trinta e cinco. Turbinada de fábrica. Air bag duplo com algumas bolinhas de água. Hoje a festa será das grandes e não vou me esquecer de que mamografia após os 40 anos é como aniversário, todo ano tem que fazer.

Texto de autoria da Dra Tereza Cristina Ferreira de Oliveira. Ela é médica radiologista da Redimama e, nas horas vagas escreve  lindos contos e crônicas.  A Dra Tereza cedeu gentilmente seu conto “Sereia Negra” e a crônica “Amor de mãe”, para publicação e nós agradecemos imensamente a confiança. 

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