Todo dia: Um filme tão arrebatador quanto o livro, mesmo apresentando um novo ponto de vista
Adaptar uma obra literária é um desafio para qualquer produção. Acredito que adaptar David Levithan, seja um desafio ainda maior. Levithan é um autor que recomendo sempre, suas histórias são empolgantes, inteligentes e sobretudo surpreendentes. Indico “Will Will” que é uma parceria com John Green e agora, o “Todo dia”, que curiosamente chamou minha atenção pelo trailer da adaptação. Ahhh!! David Levithan será uma das atrações da Bienal do Livro de São Paulo 2018.
O livro: “Todo Dia” conta a história de “A”, (que eu entendi que uma espécie de alma), mas li alguns textos sobre a obra em que as pessoas traçam diversas teorias para o fato de “A”, acordar todos os dias em um corpo diferente, desde que nasceu. Também vou denominar “A” como ele, porque o texto leva para este direcionamento, e em alguns pensamentos e atitudes, ele se mostrou um “machinho” chato e até mesmo egoísta.
“Até onde sei, toda pessoa que habito tem a mesma idade que eu. Não vou de 16 anos para 60. Nesse momento, é apenas 16. Não sei como isso funciona, nem o porquê. Parei de tentar entender há muito tempo. Nunca vou compreender, não mais do que qualquer pessoa normal entenderá a própria existência. Depois de algum tempo é preciso aceitar o fato de que você simplesmente existe. “ pág.8
Acostumado a essa rotina, “A” vai vivendo cada dia, sem tentar interferir ou mudar nada na vida das pessoas cujo corpo habita. Logo ao acordar, ele tem acesso as memórias dessas pessoas, e assim, faz de tudo para vencer o dia sem deixar rastros. Toda essa mecânica sempre funcionou bem, até o dia em que ele acordou no corpo de Justin, um adolescente chato, que vive um relacionamento tumultuado e abusivo com Rhiannon. “A” passa um dia sensacional ao lado dela. Algo que Justin jamais seria capaz de proporcionar. Ele se apaixona por Rhiannon, e principalmente se compadece com a relação entre a menina doce e meiga e o garoto mal-educado.
“Passei anos encontrando pessoas sem nunca conhecê-las, e hoje de manhã, neste lugar, com esta garota, sinto o impulso mais leve de querer saber. E num momento de fraqueza ou de coragem de minha parte, escolho seguir o impulso. Escolho saber mais.” (pág.11)
A meia noite “A”, muda de corpo, e no dia seguinte é Justin quem está ao lado de Rhiannon. Sem conseguir esquecer a jovem, “A” vai dedicar os dias seguintes a procura-la, mesmo que cada vez que se apresente, esteja em uma “embalagem” completamente diferente. A missão de Rhiannon não é nada fácil, apesar de “super” mente aberta, compreender toda essa loucura e viver uma história de amor “sobrenatural” é confusa para ela. Essa busca incessante de “A”, trará consequências tanto para ele, quanto para as pessoas que emprestam seus corpos. Em alguns momentos achei “A” egoísta em querer impor a ela que aceite essa situação, que convenhamos não é surreal.
Embora os jovens não se recordem do dia vivido por “A”, um deles ao acordar, abandonado no meio de uma estrada, terá alguns flashes do dia anterior e, influenciado por suas crenças, vai à imprensa alegando possessão demoníaca. “A” deixar rastros, e por isso começará a ser pressionado pelo garoto (Nathan), cujo corpo ele usou justamente para ir a uma festa encontrar Rhiannon. Em meio a essa tensão, a relação entre Rhiannon e “A” se fortalece, mas sempre sobre a sombra da incerteza do amanhã.
Além da história de amor, o livro traz uma grande lição contra o preconceito. Enxergar o que vem de dentro é muito mais importante do qualquer estereótipo. Gostei muito dessa pluralidade dos corpos habitados por “A”, e da descrição única de cada um. Jovens que lidam diariamente com problemas sérios como uso de drogas, depressão, obesidade, iminência do suicídio, entre outros. Levithan foi muito gentil ao nos apresentar cada identidade, com sua personalidade distinta e suas dores, seja homem ou mulher, já que “A” não escolhe o corpo que vai habitar. Teve empregada doméstica que naquele dia sofria com fortes cólicas menstruais, teve evangélico fervoroso, filhos de pais controladores ou largados, ricos e pobres, homossexuais. Teve até corpo de brasileiro, que eu amei!
O ritmo da leitura é muito frenético. As coisas vão acontecendo rapidamente. Cada dia não dura mais que quatro páginas, em histórias intensas e empolgantes. Cada linha traz o registro da narrativa poética de Levithan. O principal desafio da adaptação, é conseguir manter essa sintonia que a cada virada de página te desperta um sentimento novo.
O filme: Quando terminei de ler “Todo dia” eu fiquei ansiando por uma continuação e bem curiosa para saber um pouco mais sobre a Rhiannon, já que o livro é narrado sob o ponto de vista de “A”. Descobri que Levithan já nos brindou com uma versão dela, o “Outro dia”, publicado pela editora Record, e que sim! Temos uma continuação de “Todo dia” – Someday – ainda não lançado no Brasil. Mas o melhor estava por vir, a adaptação literária é sob o ponto de vista dela, o que para mim enriquece e complementa a história, mas que pode decepcionar os fãs que esperam “aquela” fidelidade do livro.
A essência da história se mantém com uma sequência de cenas de “A” acordando em diversos corpos, até que se depara com o de Justin. É claro que o filme de pouco mais de 1h30, não daria conta de apresentar todas as manhãs de “A”, mas as escolhas da produção ficaram perfeitas e representaram muito bem a diversidade das pessoas habitadas por ele. Apesar das cenas curtas, os atores escolhidos conseguiram dar vida aos personagens literários, reforçando a veracidade da história.
Assim como no livro, as cenas são frenéticas e a história vai se desenrolando muito rapidamente. A escolha dos cenários, e as sutilezas da vida de cada personagem que “A” vive, seguindo o compasso do relógio sempre marcando a hora de acordar e a hora de deixar o corpo daquela pessoa, manteve o tom dia a dia da história. São pessoas comuns, que trabalham, pegam carona, vão ao supermercado, a biblioteca, a escola e outras rotinas diárias.
A ótica da Rhiannon nos apresenta novos horizontes para a história não abordados no livro. Além do relacionamento complicado com Justin, ela vive momentos conturbados com a família, que envolve um surto vivido pelo seu pai no passado. Episódio que mudou a vida de todos, mas que nunca foi discutido pela família. Isso me fez questionar se talvez o pai dela não estivesse, naquele dia, emprestando o corpo para outro “A” mais velho (pode ser viagem minha), mas tudo é possível.
Esses novos dilemas na vida da Rhiannon somado ao romance sobrenatural, fizeram da atriz australiana Angourie Rice (Homem Aranha: De volta ao lar), a grande estrela da adaptação. Ela contracena com praticamente todos os atores do filme, e consegue mostrar as diferentes facetas da garota meiga e astuta descrita no livro. Angourie personalizou a Rhiannon que imaginei na leitura, embora na adaptação se apresente bem mais disposta a manter o relacionamento. E mesmo com toda fofura, dou a ela o rótulo de egoísta ofertado a “A” no livro.
A adaptação conseguiu manter o encanto da obra literária. A poética da escrita de Levithan está presente em cada cena, cenário, nos personagens e na trilha sonora. É uma história leve, para se vê com toda a família num domingo à tarde. Apesar da questão das mudanças de corpos, o assunto é tratado com muita delicadeza, focando mesmo na impossibilidade do romance e na pureza da Rhiannon, que ama simplesmente o que vem de dentro independentemente de qualquer rótulo.
Com algumas pitadas de humor e uma simplicidade inocente, “Todo dia”, aborda o amor de uma maneira profunda e sincera (quase utópica) como deveria ser. É um filme agradável de se ver e que somado a leitura do livro se torna uma experiência incrível.
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