The Handmaid’s tale: A mente brilhante da escritora Margaret Atwood eternizada no livro, filme e série
Uma das séries de maior sucesso dos últimos tempos, The Handmaid’s tale, ou na tradução livre “O Conto da Aia”, da escritora canadense Margaret Atwood, choca pelas cenas de violência contra a mulher, os perigos da ascensão do fundamentalismo religioso ao poder, e sobretudo pelo tom profético e apocalíptico acerca da perda de direitos das mulheres.
A obra publicada em 1985 é ousada para a época, uma vez que desde o final da década de 70, as mulheres já davam os primeiros passos para a independência definitiva. No Brasil e no mundo, crescia consideravelmente a participação feminina no mercado de trabalho, impulsionadas tanto pela quebra de padrões impostos pela sociedade, quanto pela necessidade de complementação da renda familiar, levando-as a sua independência financeira.
Os anos 1980 marcaram o surgimento e crescimento de organizações que defendem os direitos das mulheres. Feministas ou não que denunciam e lutam contra a violência, debatem abertamente temas como gravidez, sexualidade, controle de fertilidade e papel familiar. A propósito da década de 80, em 1985, criou-se em São Paulo, a primeira Delegacia de Atendimento Especializado à Mulher no Brasil, considerada um avanço que impulsionou a criação das demais em todo o país.
Em uma época de ascensão feminina, Margaret Atwood escreveu em The Handmaid’s tale, justamente o contrário, a desconstrução dos direitos básicos, como o de ir e vir, ler e escrever, e até mesmo falar. Questionada pelo Jornal El Pais sobre, de onde tira suas ideias, Atwood responde: “Do lado mais escuro da realidade”. Em entrevista a Revista Galileu em 2018, Atwood sugere que tudo o que aparece no livro já aconteceu em algum lugar, em alguma época. Inclusive há evidências reais sobre isso. E é assustador!
Alerta Spoiler !!
Na distopia ou ficção especulativa, como Atwood gosta de chamar sua obra, os Estados Unidos se transformam na República de Gilead, após um grupo político fundamentalista religioso chegar ao poder. Supostos cristãos que condenam veementemente a sociedade liberal. Suas principais ações são justificadas a partir de trechos aleatórios da bíblia, contudo a sua leitura é restrita apenas aos homens de alto escalão no poder.
Ao contrário do que sempre é divulgado quando o assunto é The Handmaid’s tale, não foram apenas as mulheres que perderam seus direitos, alguns homens também, inclusive os de baixo status social, perderam o “privilégio” de ter uma mulher. É o caso do personagem Nick, motorista do Comandante e soldados de baixa patente. É óbvio que essa perda não é uma fagulha do que as mulheres foram obrigadas a passar, que fique registrado.
O primeiro alvo da República de Gilead são as mulheres, impedidas de trabalhar, de ter conta em banco, subjugadas pelas condição sexual e status social. Gradativamente estipulam uma nova organização da sociedade em um sistema parecido com o de castas, inclusive com determinação vestes, e cores exclusivas para cada função feminina.
As mulheres foram divididas assim: Sempre de veste vermelho sangue, são as Aias ou servas, mulheres férteis obrigadas a reproduzir. O Azul foi dado às esposas dos comandantes. O verde para as Martas, servidoras das cozinhas e cuidadoras das mansões. O marrom é a cor das tias, mulheres cuja função é doutrinar e formar as novas Aias. Aquelas que não se enquadram em nenhuma das opções acima, são enviadas para campos de trabalho forçado. E as crianças treinadas para o casamento e reprodução.
Tudo o que era considerado “impuro” foi banido da sociedade, como álcool e cigarros. As universidades foram fechadas.. As pessoas que se opõem ao regime e não se enquadram ao novo modelo de sociedade, como homossexuais e líderes de outras religiões, obviamente são mortas, e cruelmente expostas em praça pública para que sirvam de exemplo.
“Há três novos corpos no Muro. Um é de um padre, ainda vestindo a batina preta. Os outros dois têm cartazes púrpura pendurados ao redor do pescoço: Traição por Falsidade de Gênero.” (pág.55)
O principal objetivo da seita, é purificar a nação e restituir a natalidade no país, em queda desde que os níveis de radiação chegaram ao máximo após várias guerras, causando a infertilidade de mulheres e homens, embora claro, a dos homens jamais seja admitida. Praticamente não há nascimentos em Gilead, e grande parte das mulheres são culpadas por anos antes terem se recusado a cumprir sua “missão divina” e gerar filhos. E é aqui que entram as Aias, com a única razão de suas existências, reproduzir e obedecer a todos.
“Que cada uma dê, de acordo com a sua capacidade; para cada um de acordo com suas necessidades”. (pág.143)
A narrativa da vida da Aia é feita em fragmentos que mesclam passado e presente, muitas vezes em um mesmo parágrafo, tornando a narrativa em alguns pontos confusa e de difícil compreensão. Tentei encaixar essa dificuldade na narrativa de uma mulher que perdeu toda dignidade, é violentada e constantemente humilhada. É uma narrativa dura, sofrida e tensa. A proximidade com a realidade vai se revelando no avançar das páginas e isso é angustiante!
“Nenhuma esperança. Sei onde estou, e quem sou, e que dia é hoje. Esses são os testes, e estou sã. A sanidade é um bem valioso; eu a guardo escondida como as pessoas de antigamente escondiam dinheiro. Economizo sanidade, de maneira a vir a ter o suficiente quando chegar a hora.” (pág.133)
O que lemos é um desabafo de uma leoa, presa em uma jaula, confusa e cansada, Offred já aceitou seu destino e como se fôssemos seus melhores amigos, ela divide com uma riqueza de detalhes a sua macabra realidade.
“Somos úteros de duas pernas, apenas isso: receptáculos sagrados, cálices ambulantes.” (pág.165)
A maioria das Aias foram capturadas, doutrinadas por meio da bíblia, choques, violência extrema, e abuso psicológico para servirem aos comandantes cujas esposas são estéreis. Elas vivem na mesma casa que o casal, sujeitas a todo tipo de abuso e violência, e uma vez por mês se submetem a “cerimônia”, que nada mais que um estupro consentido e na presença das esposas. O intuito é a reprodução. A propósito, caso não fiquem grávidas em três tentativas com homens diferentes elas são classificadas como “não mulher” e enviadas aos campos de trabalho forçado. Ao engravidarem, elas passam a ter alguns privilégios, como maiores cuidados e melhor alimentação. E o parto é outra cerimônia surreal, bizarra ao extremo, quando as esposas juram sentir as mesmas dores da Aia.
Várias referências bíblicas saltam aos nossos olhos. Slogans como “Deus é uma riqueza nacional”, e as inúmeras mortes justificadas por amor a esse Deus, demonstram que a sociedade não é mais a mesma. Contudo continua a mesma para os ricos, poderosos e os próprios idealizadores dessa mudança, que vivem sob uma fachada de moralismo, mas gozando dos mesmos privilégios que condenaram publicamente, como fumar, e até frequentar “clubes” de prostituição.
Sob uma série de regras absurdas, as Aias vivem seu dia a dia anuladas. Ao assumirem seus postos nas casas dos comandantes elas herdam o nome de batismo do homem com o adendo da preposição “OF” na tradução “de”. Ou seja, Offred, nada mais que a propriedade do Comandante Fred. Ao mudar de família, ocorre mesmo.
Mas aí você se pergunta: Não houve uma resistência? Sim! E foi rechaçada pela seita. Contudo, não há desistência e a salvação de Offred pode estar onde ela menos espera.
Torcemos pela salvação de Offred. Torcemos pelas mulheres. E torcemos para que nossa realidade não se torne a da República de Gilead. O lema “Nolite te bastardes carborundorum” – “Não deixe os bastardos te oprimir” nunca foi tão atual. Algumas frases são monstruosamente idênticas às que vemos hoje por aí, principalmente nas redes sociais, como: “A esposa deve ser submissa ao homem”.
Temos aqui uma obra prima, que merece ser devorada. Contudo, embora significativamente importante para as mulheres, a obra só fez sucesso de fato, mais de 30 anos após o seu lançamento e foi justamente por conta de uma adaptação. Mas não foi a primeira. E por esta nem os fãs mais fervorosos da série esperavam.
O filme: Em 1990, uma produção alemã levou a história para as telonas do cinema. Sem muito impacto, ou qualquer alarde, “A decadência de uma espécie” traz um elenco de peso. A atriz Natasha Richardson, carrega a fidelidade e a passividade da personagem Offred. A consagrada atriz Faye Dunaway interpreta, brilhantemente, a personagem Serena Joy, esposa do comandante. Quem vive a doutrinadora Tia Lydia é a atriz Victoria Tennant, e o papel do comandante fica por conta do ator Robert Duvall.
Confira o trailer:
A trama segue sua fidelidade literária com várias cenas paradas, e relatos passivos. Embora o final sanguinário seja completamente diferente, foi o que deu de fato vida à história. Traz algumas cenas de impacto e profunda angústia, como as imagens reais de manifestações feministas, a tentativa da fuga da família logo no início do regime e a triagem no teste de fidelidade. Assim como o caminhão com os dizeres “rebanho” lotado de mulheres, indignadas como rebaixamento social. A cena de freiras sendo arrastadas dos conventos causam indignação, assim como o apoio de mulheres a causa.
Contudo, em 1990, a distopia não passava de um entretenimento, infinitamente distante, pelo menos das mulheres do Ocidente, onde o filme foi veiculado.
A adaptação para o cinema é bem fiel, e sem um contexto que impacte, tanto o livro quanto o filme, não fazem o menor sentido. Não causam a indignação provocada pela série.
A série: É difícil para qualquer leitor admitir isso, mas The Handmaid’s tale só é o que é hoje, esse sucesso enorme, por causa da série.
O livro é bom, mas infelizmente não se venderia por si só, como de fato não aconteceu até 2017 (desde 1985), se não fosse a excelência da adaptação da plataforma Hulu. Vale ressaltar que a autora Margaret Atwood é uma das consultoras da série.
Confira o trailer da primeira temporada:
Ao mesmo tempo em que é fiel ao livro, nas frases, cenas, cenários e descrição dos figurinos, a série entrega mais e dá as respostas que ficaram pendentes na trama literária, como o destino de personagens importantes da trama: o marido e a melhor amiga da Offred e da Aia Ofglen; o passado dos personagens que ajudaram a construir a República de Gilead, como a esposa Serena Joy, o Comandante Fred e o motorista Nick. E revela algo que ficou misteriosamente escondido no livro, o nome da personagem principal, que também é revelado no filme, embora distintos.
Mas a principal diferença está na postura da Offred. No livro, ela nos conta uma história e seu relato é um pedido de ajuda. Já a Offred da série compactua com o telespectador sua indignação, somos cúmplices dela e queremos ir pra guerra, lutar com ela, nos inspirar nela. Derrubar a República de Gilead e impedir que ela se mostre na vida real.
Muito disso se deve, claro, a atuação primorosa atriz Elisabeth Moss, reconhecida com os principais prêmios da indústria fonográfica: Emmy de melhor atriz em série dramática em 2017 e um Globo de Ouro em 2018, também como melhor atriz. Ela deu vida a Offred que os leitores gostariam de ter visto no livro. As cenas reflexivas estão lá, os momentos de silêncio profundo também, mas no olhar há um desejo intrínseco de mudança e indignação.
Interpretar um dia a dia distópico, carregado de drama e sofrimento, não é nada fácil. Principalmente se esse cenário for moderno, mas nada futurístico, pelo contrário, o mais próximo possível da realidade. Todo o elenco caiu muito bem no papel. As interpretações são perfeitas e dignas dos inúmeros prêmios recebidos pela adaptação.
A série é como se fosse a redenção de uma obra que finalizou no ápice, sem direito a continuação. E na primeira temporada da série, Atwood como consultora, nos deu todas respostas que ficaram vagas. Amarrando as pontas que ficaram soltas no livro e dando a Offred o status de heroína que deixou a desejar no filme de 1990 e o no livro de 1985.
A segunda temporada se desprende totalmente do livro, abrindo espaço para novos personagens e mostrando novos contornos, como as colônias de trabalho forçado e o que sobrou para além do bairro chique onde Offred vivia. Gostei também de apresentar a mãe feminista da personagem, que marca no livros com frases impactantes acerca da passividade das mulheres e também da conquista de direitos.
Aprofunda no relacionamento cada vez mais conturbado entre Offred e Serena Joy. O embate entre elas, a relação de amor e ódio tem significado no passado de Serena, uma das idealizadores do regime atual, que acabou se tornando vítima da própria criação.
A segunda temporada é mais pesada que a primeira. A República de Gilead mostra que não tá pra brincadeira, despertando raiva, repulsa, indignação com cenas de apertar o coração, como as punições, mutilações, mortes e até o nascimento.
Finalmente podemos fechar o livro com satisfação e seguir apreciando os novos contornos do impressionante Conto da Aia.
Conhecer The Handmaid’s tale só faz exaltar a mente brilhante da autora Margaret Atwood, que criou uma história impactante, inteligente, bem construída e assustadoramente real.
Talvez em 1985 as pessoas não se importassem. Em 1995 algo assim fosse impossível. Em 2005 impraticável. Contudo a partir de 2015 é um caso a se pensar. Em 2019, uma sombra que ronda as mulheres e as minorias mundo afora. É um relato que serve de exemplo e atenção para todos.
Nesta coluna onde analisamos o livro e as suas adaptações, definimos que The Handmaid’s tale já nasceu pronto para adaptação, e que a série não apenas fez jus a obra primária, como superou em muito seu criador.
A propósito, a continuação literária de The Handmaid’s tale foi anunciada pela autora para o final de 2019, com direito a transmissão ao vivo. A obra se chamará “The Testaments” (Os testamentos, em tradução livre). A terceira temporada série estreia em junho.
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