Todo dia a mesma noite: A história não contada da boate Kiss
Os livros sempre fizeram parte da minha vida. E, por mais que vivamos em meio as inúmeras facilidades digitais (vídeos, fotos e áudios), ainda acredito na literatura como grande mecanismo para eternizar uma história. “Todo dia a mesma noite” é um relato torturante, triste e agoniante, e literalmente a história não contada da tragédia na boate Kiss. Ao mesmo tempo em que é uma leitura necessária para que possamos compreender até que ponto a irresponsabilidade e a negligência de pessoas que têm o poder neste país, podem acarretar em cicatrizes eternas.
O incêndio na boate Kiss foi exaustivamente explorado na mídia, programações foram interrompidas e repórteres e apresentadores deslocados para o local da tragédia. As imagens de jovens sem camisa e na posse de marretas, lutando contra uma parede indestrutível, foram apresentadas logo cedo para todo o Brasil.
Naquele domingo, os olhos dos brasileiros estavam voltados para a cidade de Santa Maria. Para os telespectadores de plantão, bastava se desconectar das mídias para não ter acesso a nada sobre a Kiss, mas para quem viveu de perto a tragédia, aquela noite jamais será deletada. Daniela Arbex, mais uma vez, conseguiu dar visibilidade àqueles que tiveram suas vidas devastadas no dia 27 de janeiro de 2013 indo muito além do dia do incêndio.
“Todo dia a mesma noite” faz muito mais do que apenas divulgar relatos de pessoas envolvidas na tragédia. É humanizá-las. Dar nome, sobrenome, passado e endereço. Apresentar para o Brasil as marcas deixadas nas famílias, nos sobreviventes, nos experientes profissionais de saúde e bombeiros da cidade de Santa Maria, todos vítimas de uma tragédia anunciada. Vítimas do famoso jeitinho que se dá para tudo neste país, onde debaixo das “vistas grossas”, tragédias acontecem, boates incendeiam, viadutos caem e a impunidade impera. Ninguém paga por isso!
“Na prática, a Kiss ficou aberta durante 41 meses e 27 dias. Nesse período, por 31 meses funcionou sem o Alvará Sanitário, incluindo o dia da tragédia. Por vinte meses, funcionou sem a Licença de Operação Ambiental. Por dezessete meses, funcionou sem o Alvará de Prevenção e Proteção Contra Incêndio. Por sete meses, funcionou sem o Alvará de Localização”. (pág.198)
Por mais que tenhamos acesso as reportagens sobre o incêndio, este livro consegue ir fundo e traçar um panorama da tragédia. Quando dá voz aos profissionais da saúde, vemos que nem toda experiência profissional é suficiente diante de tanta dor. Com o aval das famílias, entramos nos seus lares antes da tragédia, acompanhamos a busca pelos seus parentes, o desrespeito de ver políticos entrarem primeiro no ginásio para onde os corpos foram levados, a luta pelo direito de velar seus mortos (faltou velas, caixão, flores e cova), a busca por justiça e o doloroso seguir adiante. A solidariedade nos momentos de dor, taxistas que fizeram corridas de graça prestando socorro às vítimas e transportando familiares. A exploração da tragédia com pacotes funerários inflacionados. Famílias processadas pelo Ministério Público. A luta para manter viva a memória de 242 pessoas que tiveram seus sonhos interrompidos naquela noite.
Este livro sintetiza o que foi a tragédia da Kiss desde a negligência dos empresários, políticos e sociedade civil, os trâmites do processo nos tribunais, e a destruição na vida daqueles que perderam seus entes queridos. As consequências daquela noite ainda estão vivas na memória de uma cidade inteira. O Brasil também não deve se esquecer. E, para que daqui a dez, vinte anos, as pessoas conheçam esta história, leiam este livro e não deixe que uma tragédia como essa se repita. Afinal, quantas “Kiss” estão abertas hoje sob as mesmas condições e nada é feito. Ler este livro é exercitar a sua empatia e pensar que qualquer um de nós, qualquer um que está lendo esta resenha, poderia ter sido uma daquelas vítimas. Todos os sinônimos da palavra doloroso não são suficientes para descrever a experiência desta leitura, e menos ainda para quem viveu a tragédia.
Daniela Arbex é a escritora do mês de janeiro. Saiba mais sobre ela clicando aqui.
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