Hibisco Roxo – Chimamanda Ngozi Adichie
A autora de Hibisco Roxo, a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, é conhecida por sua luta pelo feminismo. A sua palestra “Todos devemos ser feministas” na conferência TED x EUSTON já foi vista por mais de 5 milhões de pessoas, foi musicada pela cantora Beyoncé, virou livro publicado no Brasil pela Companhia das Letras e teve os direitos adquiridos pela atriz Lupita Nyong´o.
A leitura de “Hibisco Roxo” justifica sem meias palavras os motivos que levaram Chimamanda a abraçar a luta das mulheres e ferrenhamente defender os mínimos direitos atribuídos a elas, sobretudo em seu país. É um livro que desnuda uma realidade abusiva e expõe feridas vividas por muitos brasileiros e africanos em diferentes cenários.
A voz de “Hibisco Roxo” é dada a Kambili, uma adolescente tímida, sem amigos, que mal consegue formar frases distintas e completar diálogos com aqueles que se aproximam dela. O motivo disso, fica claro logo nas primeiras páginas, o regime de tirania, opressão e extrema violência dentro da sua casa. Beatrice (a mãe) é submissa e se rende a todas as vontades do marido, assim como os filhos — Jaja o mais velho e a caçula Kambili. Mãe e filhos são reféns do fanatismo religioso do pai.
“Uma vez, Papa me abraçou orgulhoso e beijou minha testa, porque o padre Benedict lhe dissera que meu cabelo estava sempre coberto do jeito certo para a missa, que eu não era como as outras meninas da igreja que deixavam o cabelo à mostra, como se não soubessem que expor o cabelo na igreja era pecado.” (pág.110)
Eugene é um empresário africano, convertido ao catolicismo e, como todo fanático, impõe suas crenças a todos, mesmo que para isso precise usar a violência. Sob a fachada de bom samaritano, ele vive duas vidas: a de homem caridoso que ajuda os pobres e a igreja, mas dentro de casa é um intolerante, controlador, que impõe aos filhos e a mulher Beatrice uma rotina absurda de orações, punições físicas e abusos psicológicos, que me causaram muito incômodo na leitura. Esse relacionamento abusivo “familiar” me surpreendeu por envolver várias pessoas e por elas viverem tanto tempo sob esse fardo sem tomar nenhuma atitude. Como no trecho abaixo que culminou em cintadas à mãe e aos filhos.
_ O que você está fazendo Kambili? Engoli em seco
_Eu…eu…
_Está comendo dez minutos antes da missa? Dez minutos?
_Ela ficou menstruada e está com cólica… _explicou Mama
Jaja a interrompeu.
_Fui eu que mandei Kambili comer antes de tomar Panadol, Papa. Eu preparei o cereal para ela.
_Será que o demônio pediu para você fazer o trabalho dele? _ disse Papa, com as palavras em igbo saindo de sua boca numa torrente. _Será que o demônio armou uma tenda dentro da minha casa?”. (pág.111)
Eugene abomina tudo o que o vai contra os seus princípios religiosos, inclusive o pai, que se mantém fiel às tradições africanas e nega se render ao catolicismo e as investidas da cultura ocidental em sua vida. Mesmo que isso custe viver na miséria, enquanto o filho desfruta de toda a riqueza. Para Eugene, o pai é um pagão e o proíbe até mesmo de entrar em sua mansão, para tristeza da sua irmã Ifeoma.
“Mas você sabe que Eugene briga com as verdades das quais ele não gosta. Nosso pai está morrendo, ouviu bem? Morrendo. Ele é um homem velho, quanto tempo ainda tem vida, gbo? Mas Eugene não o deixa entrar nesta casa, se recusa até a falar com ele. O joka! Eugene tem que parar de fazer o trabalho de Deus.” (pág. 105)
Pressionados pelos abusos paternos, Kambili e Jaja têm pouca consciência do que é certo e errado, uma vez que vivem praticamente reclusos na mansão da família, com horários determinados para tudo, inclusive orações. Porém, uma nova perspectiva se abre quando eles vão passar uns dias em outra cidade na casa de sua tia Ifeoma.
Uma nova realidade também se apresenta a eles. Não há fartura na casa de Ifeoma, uma professora universitária, viúva, que trabalha duro para criar os três filhos. Amaka tem a mesma idade de Kambili, Obiora a mesma idade de Jaja e o pequeno Chima. A propósito, Amaka é totalmente o contrário de Kambili e o relacionamento entre as duas é difícil a princípio, porque ela não aceita o modo de vida da prima. Amaka é moderna, questionadora, inteligente, feminista, desprendida e sabe se expressar sobre diversos assuntos.
Na casa de Ifeoma falta comida, água, luz, a descarga no vaso sanitário é racionada e gasolina do carro velho da tia é fracionada. No entanto, não falta amor, felicidade, e sobretudo liberdade, algo que Jaja e Kambili nem sonham em ter. Em casa, todo o controle exercido pelo pai, os impede de executar tarefas simples como escolher o canal de TV para assistir, o tipo de música que vai ouvir ou que roupa usar.
“O riso ressoava pela casa de Tia Ifeoma e, não importava de que cômodo vinha, se espalhava por todos os outros. As discussões nasciam rapidamente e rapidamente também morriam.” (pág.151).
Esse contraponto me chamou muito atenção. Jaja e Kambili tem dinheiro, mas não tem paz. Enquanto a família de Ifeoma sofre escassez de tudo, eles também são felizes, têm escolhas e são livres para serem eles mesmos. É nítido o crescimento intelectual de Jaja e Kambili. O amadurecimento dos dois em poucos dias que ficam sem a sombra do pai, proporcionará descobertas que influenciarão na quebra do ciclo de violência familiar que vivem. É uma pena que esse momento de reviravolta tenha tido pouquíssimo espaço na trama.
Hibisco Roxo é um livro pesado, sofrido de ler e que causa muita indignação. Com uma delicadeza e destreza extraordinárias, Chimamanda descreve cenas de violência como se tivesse trocando fraldas de um neném. E quando menos esperamos já estamos ali mergulhados na cena, sofrendo e praticamente sentindo as dores daquela família.
Uma sociedade é composta por pessoas e muito do que se vive em casa se reflete na formação dos costumes. Chimamanda expõe um lado sombrio da sociedade nigeriana que, para se encaixar nos padrões impostos pelo capitalismo e pela igreja Católica, massacra sua cultura e atormenta seus habitantes.
Na história de Kambili identificamos problemas sérios, a gritante desigualdade social, repressão, censura, fanatismo e intolerância religiosa, violência doméstica, opressão, entre vários outros. A negação da sua cultura raiz e sobretudo essa teia de violência em uma família rica, mascarada pela fé e protegida pela sociedade me impressionaram bastante.
(…) pois há certas coisas que acontecem e para as quais não podemos formular um porquê, para as quais os porquês simplesmente não existem e para as quais, talvez eles não sejam necessários.” (pag.317)
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