
O Quarto de Jack: Histórias de cativeiro
A infância pode apresentar uma inocente incompreensão diante do absurdo e da violência e alguns filmes explicitam essa delicadeza diante de situações brutais. É o caso de, por exemplo, O labirinto do fauno (2006), A vida é Bela (1997), A menina que roubava livros (2013), O menino do pijama listrado (2008). E é o caso também de O quarto de Jack (Room, 2015), meu filme preferido do ano de 2016.
Sinopse: Joy (Brie Larson) e seu filho Jack (Jacob Tremblay ❤) vivem isolados em um quarto. O único contato que ambos têm com o mundo exterior é a visita periódica do Velho Nick (Sean Bridgers), que os mantém em cativeiro. Joy faz o possível para tornar suportável a vida no local, mas não vê a hora de deixá-lo. Para tanto, elabora um plano em que, com a ajuda do filho, poderá enganar Nick e retornar à realidade.
Muito pode ser dito sobre esse longa-metragem maravilhoso, mas hoje irei focar na discussão que ele possibilita sobre casos de privação de liberdade.
Existe um tipo peculiar de sequestro que não ambiciona resgate, e sim, a posse irrestrita sobre outro ser humano. Várias pessoas já foram mantidas em cativeiro durante um longo período de tempo, vítimas desse crime.
O Quarto de Jack não é um filme baseado em fatos reais, mas é possível perceber, assistindo-o, que não foram poupadas pesquisas sobre histórias de cativeiro para fundamentar a produção.
Conheça alguns casos reais e entenda a fidelidade do filme ao tema:
- As vítimas e os agressores:
Muitas vítimas são sequestradas ainda na infância ou adolescência e podem ser mulheres ou homens. O sequestrador é sempre um homem, embora algumas vezes seja ajudado por uma mulher, que, geralmente, é sua esposa como nos casos de Jaycee Lee Dugard, que foi raptada nos Estados Unidos aos 11 anos de idade por Philip Garrido e sua esposa, e Colleen Stan, que também foi sequestrada nos Estados Unidos aos 20 anos de idade por Cameron Hooker e sua esposa.

A personagem Joy foi sequestrada por Old Nick aos 17 anos e mantida em cativeiro durante 7 anos.
- Relação vítima e sequestrador: O raptor emprega violência física, sexual e psicológica sobre suas vítimas.
Natascha Kampusch foi sequestrada em 1998 na Áustria, por Wolfgang Priklopil, quando tinha 10 anos de idade. Kampusch escreveu um livro, chamado 3096 dias, sobre o período de 8 anos em que passou em poder de seu sequestrador.
No livro, a garota relata os constantes ataques que sofria de Priklopil que lhe batia violentamente e deixava-a nua (de forma a dificultar sua fuga, presumindo que ela não correria sem roupas).
O raptor mantinha controle extremo sobre o ambiente em que ela vivia (um porão): até a iluminação estava em seu poder, se ela ficaria na claridade ou no escuro. Natascha era privada de comida, quando fugiu pesava apenas 48 kg (apenas 3kg a mais de quando foi sequestrada, aos 10 anos). Além disso o sequestrador dizia constantemente que ninguém mais estava procurando pela menina, que ele era tudo o que ela tinha e menosprezava-a minando sua autoestima e confiança.

O controle sobre a alimentação, a violência e o menosprezo constante sofridos pelas vítimas também são relatados nos livros: Uma vida roubada, escrito por Jaycee Lee Dugard, e Libertada, escrito por Michele Knight, (uma das três vítimas de Ariel Castro, a primeira a ser sequestrada, em 2002, quando tinha 20 anos). Além disso Dugard e Knight relatam os estupros que sofriam constantemente.

No filme encontramos vários exemplos desses tipos de violência, Joy também era estuprada e surrada por Old Nick, e ele também controlava o ambiente em que ela vivia, suspendendo, em uma das cenas, o aquecimento elétrico do quarto onde ela vivia com Jack.
- Filhos:
Algumas das vítimas, como a personagem Joy, tiveram filhos de seus sequestradores. Jaycee Lee Dugard teve dois e Elizabeth Fritz, sequestrada aos 18 anos pelo próprio pai, Joseph Fritz, teve 7.

- Assédio da mídia- Uma crítica ao jornalismo:
Os jornalistas nem sempre tem sensibilidade para lidar com as vítimas de casos complexos. Além disso os profissionais podem ser cruéis, tanto com as perguntas feitas, tanto ao lidar com as respostas que não eram as que esperavam.
Além disso, como são casos que envolvem muita comoção pública, existe um assédio muito grande dos meios de comunicação sobre as vítimas. Não é dado tempo a elas para se restabelecerem minimamente sem a perseguição dos repórteres.
Isso pode ser visto claramente no filme com a insensibilidade das perguntas feitas para Joy pela jornalista (é possível perceber o julgamento que a profissional faz, mesmo não tendo a menor ideia do que é passar pelo que a personagem passou).
Uma das vítimas de sequestro que teve uma das relações mais complicadas com a mídia e o público foi Natascha Kampusch, sobre isso ela diz :
“As coisas não são totalmente pretas ou brancas. E ninguém é totalmente bom ou mau. Isso também vale para o sequestrador. Essas são palavras que as pessoas não gostam de ouvir de uma vítima de sequestro. Porque os conceitos de bem e mau já estão claramente definidos, conceitos que as pessoas querem aceitar para não perder o rumo em um mundo cheio de tons de cinza.”
“Quando falo sobre isso, posso ver a confusão e o repúdio no rosto de muitas pessoas que não estavam lá. A empatia que sentem pela minha história se congela e se transforma em negação. Pessoas que não têm ideia da complexidade do cativeiro me negam a capacidade de julgar minhas próprias experiências ao pronunciar três palavras: ‘Síndrome de Estocolmo’.”
Natascha Maria Kampusch
É importante destacar que tanto a produção literária quanto a cinematográfica servem para informar, mas sobretudo alertar as mulheres do quão perversa é a mente de um sequestrador e de quanto todas estão sujeitas em qualquer parte do mundo.
Em sua maioria, tanto os livros quanto os filmes são angustiantes de acompanhar. É o caso por exemplo do livro Diário de uma escrava da brasileira Rô Mierling, que conta a história de horror vivida por Laura (personagem fictícia), sequestrada e mantida em um buraco pelo seu sequestrador, um homem normal para os padrões da sociedade, “de família”. Estevão é casado, trabalhador e vai à igreja, uma fachada perfeita para encobrir o psicopata que habita nele.
Também é o caso do clássico O Colecionador de John Fowles, que narra a história do jovem retraído Frederick Clegg, um funcionário público que coleciona borboletas e, subitamente, se torna dono de uma fortuna. Ele então passa a ter uma ambição: sequestrar a bela Miranda, seu amor platônico, para mantê-la prisioneira em uma casa afastada até que a moça demonstre interesse por ele.
Em ambos os casos temos personagens comuns, com vidas comuns, mas que escondem um lado sombrio e aterrorizante.
A Coluna Território Livre é dedicada a análise de filmes e séries e outros entretenimentos.