Netflix | Divulgação
O Poço: filme de 2019 reflete o caos no mundo em tempos de Coronavírus
Um dos filmes mais assistidos da Netflix Brasil, o Poço tem dado o que falar nas redes sociais e gerado reflexões profundas por traduzir profeticamente o cenário mundial.
É possível praticar a solidariedade espontânea em tempos de pandemia? E em dias aparentemente normais para a maioria da população?
A pandemia de Coronavírus trouxe à tona a pauta de desigualdade social existente no Brasil. Isto porque prateleiras de supermercados vazias e o desaparecimento de produtos essenciais evidenciaram, mais uma vez, os privilégios das classes com capital suficiente para comprar, carregar e estocar comida e álcool em gel, por exemplo. Eu sei, você deve estar se perguntando o que diabos tem a ver o surto da Covid-19 com o longa O Poço (El Hoyo, no original), terror recente da Netflix. Correndo o risco de parafrasear um dos personagens mais enigmáticos do filme, eu diria que essa relação é óbvia.
De origem espanhola, a produção perturbadora marca a estreia do cineasta Galder Gaztelu-Urrutia enquanto diretor. O longa se passa em um mesmo cenário, O Poço, uma prisão vertical onde Goreng (Ivan Massagué) decide entrar como estratégia para parar de fumar. No local, ele conhece Trimagasi (Zorion Eguileor), um senhor com quem compartilha a cela, ou melhor, o andar.
Privados da luz do sol e de visitas, os presos são divididos por níveis e a alimentação é enviada por meio de uma plataforma, que desce os andares gradualmente. Como estão no nível 48, a dupla precisa esperar até que todos os presos acima deles se alimentem de um banquete preparado no nível zero e disponível por poucos minutos em cada andar. Além disso, são mortais as consequências para quem guardar restos de comida.
Veja o trailer:
Goreng e os telespectadores têm um prelúdio de como o Poço funciona quando o velho o explica que “Existem três tipos de pessoas. As de cima, as de baixo e as que caem”. Traduzindo, a probabilidade de os detentos comerem diminui à medida que a plataforma desce, o que resulta em violência, insanidade, canibalismo e suicídio entre aqueles que passam fome. A esperança – ou o pesadelo – dos habitantes do Poço consiste no fato de que a cada 30 dias eles são trocados de níveis aleatoriamente podendo, assim, irem para o primeiro ou o 139º andar, por exemplo.
Quando sua companheira de cela Imoguiri (Antonia San Juan) afirma que somente a solidariedade espontânea poderia causar mudanças, isto é, se cada preso, pensando no próximo, comesse somente o necessário, Goreng decide enviar uma mensagem de esperança à Administração, levando-o a passar por situações extremas.
Apesar de ser categorizado como terror, O Poço entrega muito mais que os típicos filmes do gênero, entretanto, as cenas angustiantemente realistas são dignas até mesmo de fãs da franquia Invocação do Mal. Mas, por que é possível linkar a crítica social do filme com o momento atual?
Assim como os filmes Parasita, de Bong Joon Ho, e Nós, de Jordan Peele, O Poço retrata o tema desigualdade social de maneira brutal e objetiva, como um tapa na cara ou um soco no estômago. O caráter visceral do longa justifica-se pela maneira crua com que o sistema capitalista (principalmente) é retratado, sem eufemismos.
Desenrolada em uma velocidade feroz, a narrativa ataca a opressão sofrida pelos mais pobres, que ficam à mercê da possibilidade de serem notados. Vale ressaltar, inclusive, os meandros da solidariedade, visto que é mais fácil abdicar de uma fração quando você muito tem, mas, e quando você não tem em abundância? A falta justifica os excessos? Outro ponto é a necessidade de pensarmos na distribuição justa das riquezas como único remédio de superação da pobreza.
Sendo assim, O Poço é uma excelente opção para quem busca mergulhar em uma produção de qualidade, mas sem servir de escapismo, pois a realidade é empurrada goela abaixo do espectador em 300 níveis diferentes.
Post Scriptum: Por que Dom Quixote?
Nenhuma cena ou informação no mundo cinematográfico é acidental. Em O Poço, o indivíduo pode escolher um objeto que o acompanhará durante sua pena. Enquanto Trimagasi optou por uma faca e Imoguiri pelo seu bicho de estimação, Goreng levou consigo o livro Dom Quixote de La Mancha, do castelhano Miguel de Cervantes. Estando atrás apenas da Bíblia entre os best-sellers mundiais conforme estimativas, a obra aborda temas como a necessidade de um mundo mais justo e humano, a importância da liberdade, a luta pela dignidade e a necessidade do diálogo por meio dos personagens Dom Quixote e Sancho Pança. Eu pergunto, seria Coreng um quixotesco?
O Poço venceu dois importantes prêmios: Goya de melhores efeitos especiais e o Gaudí Awards também na categoria efeitos especiais.
O filme é instigante e impulsiona a criação de várias teorias. Se você assistiu, deixe aqui suas observações. Principalmente sobre o final.
O texto é uma contribuição da jornalista mineira Jéssica Torres. Agradecemos imensamente a confiança! Contamos com novas participações.
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