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O ódio que você semeia – Angie Thomas

por Elis Rouse
12 minutos de leitura

O ódio que você semeia – Angie Thomas

Definitivamente O ódio que você semeia, sobretudo para as crianças, será a base do futuro que viveremos. O ódio que você semeia, mantém viva uma cadeia de preconceito que jamais terá fim, se você não tiver uma atitude de mudar. Simples assim!

Essa é a premissa do livro, brilhantemente retirada do trecho de uma das músicas de maior sucesso do rapper e ícone da música americana, Tupac.

_Pac disse que Thug Life, “vida bandida”, queria dizer The Hate U Give Litle Infants Fucks Everybody, ou “o ódio que você passa pras criancinhas fode com todo mundo”

E fode mesmo!

Lembro de todas aquelas campanhas de violência contra a mulher e racismo, onde crianças se negaram a proferir frases e comentários preconceituosos. A criança é pura e ávida por aprendizado, e este livro é, antes de tudo, um alerta sobre atitudes e ações que pregamos no dia a dia. Uma reflexão sobre qual ódio estamos, direta ou indiretamente alimentando.

O livro conta a história de Starr, uma menina de 16 anos, que joga basquete, estuda em uma escola particular e namora o colega de classe e fofo (crush) Chris. Até aí nada de mais, se Starr não morasse em Garden Heights, um gueto americano, dominado pelas drogas e violência de gangues. Se Starr não fosse a única garota negra da escola que fica do outro lado da cidade.

Pensando numa realidade diferente para os filhos, os pais de Starr – Maverick, um comerciante que passou 3 anos na cadeia por envolvimento com gangues, e Lisa, enfermeira, expulsa de casa após se envolver com Maverick – se esforçam para afastar os filhos (Sekani, Starr e Seven) da violência do gueto, dando-lhes a possibilidade de se dedicar aos estudos e tentar uma vida diferente. Entre dois mundos, Starr se esforça para se sair bem, mas o choque de realidade é gritante e inevitável.

“A Starr da Williamson não usa gírias; se é algo que um rapper diria, ela não diz, mesmo que os amigos brancos digam. As gírias os tornam descolados. As gírias a tornam “daquele bairro”. A Starr da Williamson segura a língua quando as pessoas a irritam para que ninguém pense que ela é a “garota negra cheia de raiva”… Não faz cara feia, não olha de canto de olho, nada disso… Basicamente, a Starr da Williamson não dá motivo para que alguém a chame de garota do gueto”. (pág.65).

Isso se reflete nas prioridades de Starr, cada vez mais distante do gueto, e também do seu círculo de amizades da infância. Ela, inclusive é alvo de preconceito por parte dos amigos negros, como a Kenya, por estudar e passar mais tempos com brancos. Tentando provar que ainda pertence aquele lugar, ela aceita o convite da amiga para ir a uma festa. Lá ela reencontra seu melhor amigo de infância Khalil, e logo de cara, pela roupa e acessórios do garoto, ela já percebe que ele está envolvido com coisas erradas.

Mas Starr não tem tanto tempo para questioná-lo, já que um tiroteio os obriga a sair em fuga do local. Na volta pra casa, Starr e Khalil conversam e revivem alguns dos bons momentos que passaram juntos. Entretanto a simples carona se transforma em uma tragédia, quando os dois são parados por uma patrulha policial que resulta na morte de Khalil, com 3 tiros pelas costas, dado por um policial branco.

“Quando eu tinha 12 anos, meus pais tiveram duas conversas comigo. Uma foi a de onde vêm os bebês e tal (…) A outra foi sobre o que fazer se um policial me parasse.”

_Starr-Starr, faça o que mandarem você fazer. Mantenha as mãos à vista. Não faça movimentos repentinos. Só fale quando falarem com você”. (pág. 24)

É a segunda vez que Starr vê um amigo ser covardemente assassinado. Agora, como única testemunha do crime, ela terá que sair do seu conforto e decidir se irá se expor para fazer justiça ao seu amigo, ao mesmo tempo que está na mira das gangues, da polícia e dos olhos preconceituosos da sociedade. Enquanto isso sua família ainda tenta evitar que um jovem do bairro, Devant, também se torne uma estatística.

“Já vi acontecer um monte de vezes: uma pessoa negra é morta só por ser negra e o mundo vira um inferno. Já usei hashtags de luto no Twitter, repostei fotos no Tumblr e assinei todos os abaixo-assinados que vi por aí. Eu sempre disse que, se visse acontecer com alguém minha voz seria a mais alta e garantiria que o mundo soubesse o que aconteceu. Agora, sou essa pessoa, e estou morrendo de medo de falar.” (Pág.35/36)

A morte de Khalil desencadeia uma onda de protestos na cidade. A imprensa já ensaia uma defesa em favor do policial, desqualificando Khalil e apresentando hipóteses sobre a sua suposta ligação com traficantes, mesmo estando desarmado no momento da morte. O pré-julgamento pela cor da pele permeia toda a narrativa e o desenrolar dos principais fatos.

“Pessoas como nós em situações assim viram hashtags, mas raramente conseguem ter justiça. Mas acho que todos esperamos que essa vez chegue, a vez em que tudo vai acabar da forma certa”. (pág.55)

É um livro tenso, que expõe a dura realidade de milhares de pessoas que vivem entrincheiradas entre gangues (traficantes), a mercê da violência, da ação truculenta da polícia, e ainda precisam lidar diariamente, continuamente, com o preconceito pelo simples fato de serem quem são. Estamos falando aqui de Garden Heights gueto americano, mas poderia muito bem ser qualquer favela brasileira.

Apesar de toda apreensão, tensão e dor, a narração de Starr é doce e tranquila, porque essa é a vida dela. Ela quer  algo melhor, e é ali que está a sua identidade. E aqui entra a escrita magistral da autora e destaca a importância do lugar de fala. Angie Thomas é negra, viveu em um gueto e como tal consegue passar, e nos fazer enxergar com muita serenidade, grandes ensinamentos e frases de efeito, a difícil e incessante luta de quem é alvo de preconceito pelo simples fato de existir.

Angie não poupa o leitor quando desnuda e escancara a injustiça social e o preconceito racial enraizado na sociedade, passado entre gerações, refletido entre todos, e evidenciados nas ações da polícia, elite americana e imprensa. Mas ela também nos apresenta o lado contrário, como o medo de Starr em apresentar ao pai um garoto branco.

O ódio que você semeia é um livro atual, com referências reconhecidas por várias gerações como Harry Potter, Candy Crush, O maluco no pedaço, que aliás é que o que une a garota negra, ao garoto branco. Traz referências a ícones da cultura negra, como Malcolm X, Panteras Negras, Kendrick Lamar, Drake e outros.

Em tempos de ódio e absurda falta de empatia, essa história é um bálsamo para a alma. A leitura deveria ser obrigatória nas escolas, para que todos pudessem refletir e entender de fato a diferença entre mimimi e lugar de fala.

Filme:

O ódio que você semeia é um livro impactante. Daqueles que a gente lê, já imaginando como seria as cenas no cinema, os dilemas da Starr entre seus dois mundos, a trilha sonora de cada ambiente, os escalados para o papel de personagens tão bem construídos e marcantes. E nesse aspecto a adaptação não decepcionou.

A escolha dos atores foi perfeita e retratou fielmente os personagens e as principais cenas do livro com um elenco de peso, com estrelas do cinema e de séries de maior sucesso como: K.J. Apa (Riverdale); Russell Hornsby (Creed II e Um Limite Entre Nós); Lamar Johnson – Seven (X-Men: Fênix Negra e Saving Hope); Sabrina Carpenter (Orange Is the New Black e Law & order: Special Victims Unit); Anthony Mackie (Vingadores e Capitão América). Reforçando a importância do lugar de fala, a direção ficou por conta de um diretor negro, um dos mais aclamados de Hollywood,  George Tillman Jr, responsável pelas produções Luke Cage e Homens de Honra.

Cena filme / Divulgação

O destaque absoluto é Amandla Stenberg que já havia nos impactado como a pequena guerreira Rue de “Jogos Vorazes”. E não era para menos, já que toda a história gira em torno da personagem Starr, ela precisou mostrar toda a sua versatilidade ao encarnar a menina doce carismática, ao mesmo tempo angustiada com a vida dupla que leva. Essa mudança de perspectiva, os intensos conflitos pessoais exigiram muito e ela se saiu muito bem. A força da cena da morte do Kalil fez meu coração bater mil vezes mais forte.

Cena filme / Divulgação

Quando se fala em bairro pobre e bairro rico, a discrepância entre os dois cenários ficou nítida. Em Garden Heights prevalece os tons amarelados, alegres, a população é predominantemente negra. Nos bairros ricos, os personagens são extremamente brancos e contrastam com as construções em tons cinza azulados. A cena em que a família da Starr sai do gueto rumo a escola, mostrou muito bem essa transição.

Cena filme / Divulgação

Na contramão do livro, a adaptação não apresenta toda aquela tensão que experimentamos a cada virada de página. Tudo acontece muito rápido, principalmente pelos cortes feitos (sabemos que não dá pra encaixar tudo), algumas cenas importantes foram substituídas por outras (bem) diferentes, que distanciaram do livro, como o envolvimento de Starr com Kalil e a decisão da família sobre sair ou não do gueto. Além disso, ignoraram um dos personagens importantes do livro, que dá um certo fôlego e sentido para o embate da família Carter contra as gangues.

Cena filme / Divulgação

A importância do tema e a mensagem sobre preconceito racial e injustiça social se sobressai em um em filme forte, impactante e transformador. Não superou o livro, mas trouxe uma reflexão das mais importantes a um público que precisa deste tipo de história para criar empatia e sobretudo senso crítico.

O aspecto negativo da adaptação, ficou com o descaso, ainda não explicado, da distribuidora FOX, e as principais redes de cinema, em não apresentar o filme ao grande público, deixando a exibição fora das grandes salas. Pela importância do tema, pela força do best-seller direcionado aos jovens, é uma falta de respeito com os leitores e os amantes do cinema.

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