Grande sertão: veredas na visão do moçambicano Mia Couto
Um bate-papo sincero entre dois fãs de Guimarães Rosa: o escritor Mia Couto e a jornalista Selene Machado
Eu já estou tremendo quando Mia Couto entra tímida e silenciosamente na sala. Quase como se ele fosse também um jornalista à espera do entrevistado. Aliás, o moçambicano é mesmo jornalista: já exerceu a profissão e diz que é um cargo vitalício – amaldiçoa na gente o hábito de fazer perguntas. Ele cumprimenta todos os presentes com um aperto de mão.
O escritor veio ao Brasil especialmente para participar de uma tour que promove a nova edição de o Grande sertão: veredas, lançada pela editora Companhia das Letras. Mia Couto é admirador confesso de João Guimarães Rosa e é o autor brasileiro que pauta nossa entrevista.
Quando me sento ao seu lado, tenho a oportunidade de, finalmente, perguntar para um leitor não brasileiro de Guimarães sobre a experiência com a linguagem na obra do autor.
Guimarães Rosa é conhecido por reinventar a língua na escrita, mesclando regionalismos mineiros e palavras criadas por ele. Isso dá ao autor a fama de ser uma leitura complicada, mesmo para os nascidos em terras tupiniquins. Quando perguntado se havia se deparado com dificuldade na leitura de o Grande Sertão, Mia é categórico:
“Ah, tive sim essa dificuldade com a linguagem. Mas isso não atrapalha, não é um peso. Aquela palavra que a gente percebe que é inventada, ou que Rosa vai buscar no falar do sertanejo, não é uma barreira, pelo contrário. Acho que também faz parte do encantamento com a obra, perceber que tem coisas que a gente não sabe. E mesmo quando ele usa o vocabulário que é regional…Ele supera isso, porque ele pega o regional e faz algo que, realmente, é universal.”
Durante sua fala para o auditório lotado do Sesc Paladium, Mia, também explana sobre a dificuldade experimentada com a obra “confesso que o Grande sertão não foi, para mim, um livro fácil. No início, resisti como quem se apercebe que precisa de reaprender a ler. Aquela língua era e não era a minha língua. Eu já tinha lido os contos de Rosa, mas o Grande sertão era uma outra coisa”.
Além disso, o moçambicano aborda a língua construída por Guimarães para contar uma curiosidade. Foi Luandino Vieira, autor angolano, quem apresentou a obra de Rosa para Mia Couto. Luandino esteve preso por oito anos em um campo de concentração em Cabo Verde, condenado pela ditadura durante a luta em prol da descolonização de Angola. Os guardas censuravam os livros que entravam no confinamento e, segundo Mia, “um dia chegou O Grande Sertão: Veredas e o diretor da prisão, que fazia a função de censor, leu algumas páginas e não entendeu nada. Os colegas dele disseram: Bom podemos deixar entrar isso, essa pessoa nem sabe escrever em português.” Nesse momento o auditório se enche de gargalhadas.
Antes disso, durante nossa entrevista, Mia – para me distrair do meu nervosismo declarado me pergunta: “Você não teve também dificuldade com a linguagem?”. Eu rapidamente respondo “Ih, olha aí o entrevistador virando o entrevistado.” Nós rimos e eu deixo de responder a pergunta – mas a verdade é que concordo com ele sobre a falta de barreiras impostas pela língua de Guimarães. Para mim, ler O Grande Sertão, por exemplo, não foi difícil – apenas porque foi como quando entrei no rio São Francisco e brinquei de deixar a correnteza me levar, sem oferecer resistência, porque ela seria inútil.
O local, em Guimarães, está não só na linguagem, mas também no objeto. Ele captura coisas verdadeiras sobre o homem sertanejo mineiro, esse homem do campo bruto e, ao mesmo tempo, rico em sensibilidade. Isso é verdadeiro também para a literatura de Mia, que nos apresenta algo do cidadão e da cultura moçambicana. Por isso pergunto a ele sobre a importância desse ‘local’ na literatura.
“Eu acho que esse local é importante se desperta essa ideia de que quem escreve o faz como se fosse especialmente para aquele que lê. O local aqui não é o lugar do escritor, mas é o lugar de quem está lendo. Se quem está lendo sente ‘Esse autor está falando pra mim. E como é que ele me conhece? Como conhece os meus segredos?’ Então o livro realmente encanta, não é?
Creio que precisamos inverter essa pergunta. O lugar (esse fator local) está no destinatário principalmente, naquele que lê.”
Conversamos, ainda, sobre os destinatários perdidos – porque muitos dos sujeitos sobre quem Guimarães escrevia, e Mia Couto escreve, não tem a oportunidade de se identificar. Afinal, ambos os países ainda possuem altos números de analfabetismo, e pouco incentivo à leitura, e a dificuldade não se resume apenas a isso, como Mia acrescenta: “É um problema do livro, não é? Do objeto livro que se converte em uma mercadoria que é muito pouco acessível. Mas se o livro chegar e as pessoas forem capazes de ler…”
Aí a mágica acontece, né, Mia?
Termino essa matéria, com algo que o escritor Moçambicano disse sobre Riobaldo, o personagem que conta a história em o Grande Sertão, e que creio se aplicar tanto a literatura de João Guimarães Rosa, quanto a de Mia Couto. Algo especialmente necessário em um contexto de rivalidades tão acirradas ( reflexos de uma sociedade dividida e pouco empática): o diálogo que estabelece conexões.
“Riobaldo não é apenas o protagonista-narrador. Ele é um contrabandista entre a cultura urbana letrada e a cultura oral sertaneja. Esse é o desafio que enfrenta o Brasil (e que enfrentam todos os Brasis do mundo).(…) Alguém que usa de poderes para colocar em conexão criaturas de distintos universos.”
Conversamos com o consagrado escritor moçambicano no dia 10 de abril, no Sesc Palladium. Mia Couto está promovendo o lançamento da nova edição de Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa, publicado pela Companhia das Letras.
Um detalhe da edição especial: Ela traz uma reprodução em bordado do avesso do Manto da apresentação, do artista Arthur Bispo do Rosário, com nomes dos personagens de Grande sertão: veredas. Conta ainda com desenhos originais de Poty Lazzarotto, responsável pela ilustração das primeiras edições do livro.
O texto foi uma gentil contribuição da jornalista mineira, Selene Machado.
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