Ciça Guedes autora do livro Todas as Mulheres dos presidentes fala da importância da obra para a história do Brasil
A obra Todas as mulheres dos presidentes é o resultado de uma pesquisa intensa dos jornalistas Ciça Guedes e Murilo Fiuza de Melo.
A publicação da editora Máquina de Livros, narra a trajetória das 34 primeiras-damas do Brasil, que se confunde com a história dos 130 anos da República, só que contada por uma perspectiva inédita: a das mulheres dos presidentes.
Entrevistamos a jornalista Ciça Guedes, que destaca a importância da obra como registro histórico do Brasil.
O que mais surpreendeu os autores durante a pesquisa?
Ciça Guedes: Certamente o silêncio quase absoluto da historiografia brasileira em relação a essas mulheres, e como a vida delas reflete a posição da mulher na nossa sociedade republicana. Temos poucas informações sobre as nossas 34 primeiras-damas. Deste total, temos estudos e biografias escritas por jornalistas e pesquisadores (Nair de Teffé, Darcy Vargas, Maria Thereza Goulart e, agora, uma recente sobre Marisa Letícia) ou livros de memórias (Yolanda Costa e Silva e a Nair de Teffé). O detalhe é que tanto Yolanda quanto Nair escreveram suas memórias para enaltecer o governo de seus maridos, os presidentes Arthur da Costa e Silva e Hermes da Fonseca. Elas falam pouco sobre si mesmas.
Uma imagem muito simbólica, e que resume esse pouco apreço da historiografia, está no quadro do espanhol Gustavo Hastoy, atualmente exposto no Museu do Senado, em Brasília. O quadro retrata uma cena em que o marechal Deodoro da Fonseca aparece em uma mesa, rodeado por seus ministros, recebendo da mão do sobrinho, Hermes da Fonseca, a caneta usada para assinar o projeto da primeira Constituição republicana, de 1891.
É possível identificar todas as 19 pessoas da imagem, menos uma: Mariana Cecília de Sousa Meireles, mulher de Deodoro. Ela é a única personagem que está de costas para aqueles que veem o quadro. É impossível ver seu rosto. Até hoje só existe uma imagem conhecida da primeira-dama pioneira. Seus restos mortais estão no mausoléu dedicado marido, na região central do Rio de Janeiro, mas sem nenhuma identificação. Ela sumiu da História.
Das 34 primeiras-damas, apenas Ruth Cardoso, Marcela Temer e Rosane Collor tinham diploma superior, sendo que somente Ruth Cardoso exerceu plenamente sua profissão. Por sua vez, quando olhamos os maridos-presidentes, praticamente todos tinham nível superior ou formação militar equivalente. Do total das nossas primeiras-damas, 13 se casaram com menos de 20 anos e, dessas, três tinham apenas 14 anos quando subiram ao altar. A mulher era dona de casa – ou de “dona do palácio”, no caso das mulheres dos presidentes – a quem cabiam os compromissos domésticos, de anfitriã, esposa e mãe.
Em 2019, comemoramos 130 anos da República brasileira e a ideia de recontar esse período pelo viés feminino nos cativou. Descobrimos que, por trás desse véu de silêncio sobre as nossas primeiras-damas, há histórias de vida fantásticas. Algumas dessas mulheres, de fato, influenciaram a construção política e social do país, para o bem ou para o mal.
Existe um perfil para ser primeira-dama? Se sim, qual delas seguiu fielmente esse padrão.
Ciça Guedes: A figura da primeira-dama nasceu nos Estados Unidos. E tanto lá quanto aqui trata-se de um cargo que não é citado na Constituição e demanda trabalho de tempo integral, sem direito a descanso, e tampouco é remunerado.
No início, a função dessas mulheres era a de anfitriã dos palácios. Cabia a elas organizar eventos e recepcionar convidados oficiais. Ao longo dos anos esse perfil ganhou novos contornos. Darcy, mulher de Getúlio Vargas, transformou a atuação da primeira-dama. Ela criou e apoiou uma série de projetos e entidades de ajuda à população pobre, como a Casa do Pequeno Jornaleiro e a Legião Brasileira de Assistência (LBA). Com Darcy, a assistência social passou a ser uma função do Estado. Antes, esse papel cabia a entidades filantrópicas, como as Santas Casas. A partir dali, as primeiras-damas passaram a ser vistas como as responsáveis pela política social dentro do governo dos maridos nos municípios, nos estados e na União.
Somente em 1993, com a regulamentação da Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), prevista na Constituição de 1988, a assistência social se tornou uma política pública, deixando de ser — pelo menos na letra da lei — um apêndice à mercê dos interesses do chefe do Executivo. O papel de primeira-dama e da própria assistência social só seria reescrito pela antropóloga Ruth Cardoso, que pôs fim à LBA e criou, de fato, políticas públicas voltadas para a segurança alimentar e a alfabetização de jovens e adultos. Hoje, vivemos um retrocesso nessa área e a primeira-dama voltou a ter papel de mera coordenadora de projetos assistencialistas.
Qual a importância desse resgate para a História do Brasil?
Ciça Guedes: 03 Algumas delas não romperam com o rígidos costumes da sociedade machista em que viveram. Vale lembrar que o Código Civil de 1916 estipulava que a esposa só poderia trabalhar com a autorização do marido, determinação que só caiu com o Estatuto da Mulher Casada, em 1962.
A obrigação de a esposa ter o sobrenome do marido só caiu em 1977, com a Lei do Divórcio. Mulheres grávidas podiam ser demitidas com justa causa, a estabilidade da gestante no emprego só foi garantida com a Constituição de 1988. E, por fim, a paridade na relação matrimonial só veio com o Código Civil de 2002. Ou seja, foi preciso esperar 86 anos – a distância que separa a promulgação dos códigos de 1916 e de 2002 – para que marido e esposa tivessem os mesmos direitos na relação conjugal, até mesmo a opção de adotarem ou não o sobrenome de seus cônjuges.
Mesmo assim tivemos primeiras-damas que enfrentaram preconceitos e apoiaram bandeiras avançadas. Hermes da Fonseca, que governou o Brasil entre 1910 e 1914, por exemplo, entrou para História como um presidente azarado e autoritário. Tinha fama também de ser desprovido de inteligência. Mas foi casado com duas mulheres brilhantes que se sucederam no cargo de primeira-dama: Orsina Francione da Fonseca e Nair de Teffé. Orsina apoiou o nascente movimento feminino e a luta das mulheres. Nair era caricaturista e abriu o Palácio do Catete para o maxixe de Chiquinha Gonzaga, algo como funk atual, chocando políticos de estirpe como o jurista Rui Barbosa, que a atacou da tribuna do Senado.
Nilo Peçanha, nosso primeiro – e, até agora, único – presidente negro, que assumiu o comando da República em 1909, exatos 100 anos antes de Barack Obama nos EUA, chegou lá muito por conta da ação de sua mulher, Anita. Filha, neta e bisneta de nobres de Campos, ela sofreu por ter se apaixonado por um negro, filho de um padeiro do Morro do Coco, comunidade pobre em que cresceu, ainda que fosse um político de destaque. A mãe de Anita, Raquel, não foi ao casamento, em 1895, e não se reaproximou da filha até morrer.
Ruth Cardoso e Sarah Kubitscheck também foram além do seu tempo, deixando suas marcas. Ruth detestava ser chamada de primeira-dama. Não queria que Fernando Henrique Cardoso entrasse na política partidária, por temor de a família perder a privacidade. Uma vez no cargo, porém, Ruth promoveu uma mudança fundamental na questão da assistência social. Atraiu a sociedade civil, por meio de ONGs, e criou o Comunidade Solidária, que tinha como linhas principais de atuação o combate à fome e ao analfabetismo. Por seu trabalho, acabou sendo convidada a discursar no plenário da ONU. Foi a única das 34 primeiras-damas brasileiras que viveu tal emoção.
Sarah Kubitschek pertencia a uma tradicional família de mineiros. Ela introduziu Juscelino no mundo dos poderosos do estado, o que facilitou sua entrada na política. Quando JK foi governador de Minas Gerais, Sarah criou a Fundação das Pioneiras Sociais, que promovia assistência médica e educacional à população carente. Em 1956, sua mãe, Luísa Gomes, morreu em decorrência de câncer ginecológico. Com o marido na Presidência, Sarah, então, decide expandir os serviços das Pioneiras Sociais para a prevenção e o tratamento do câncer feminino. E foi além: com a ajuda do médico Arthur Campos da Paz, criou uma unidade de pesquisas sobre câncer ginecológico no país. Foi pioneira nesse sentido. A primeira-dama também se envolveu com a criação de um centro de reabilitação, hoje conhecido como Rede Sarah Kubitschek de hospitais.
Por que as primeiras damas brasileiras não tiveram o mesmo destaque que as primeiras damas americanas, por exemplo?
Ciça Guedes: Talvez a explicação esteja no pouco apreço que tínhamos pela nossa História, de maneira geral. Antes do surgimento de autores que escreveram sobre a História do Brasil de forma mais atraente para o público em geral, o estudo, inclusive nas escolas, limitava-se àquele amontoado de datas e fatos.
Acontecimentos importantes e personagens fundamentais ganharam livros e biografias gostosas de se ler. No caso das primeiras-damas, há, como já dissemos, o agravante de um certo desprezo por mulheres que, supostamente, não tinham papel relevante na vida política do país. Nosso livro mostra que se trata de um equívoco, e tenta dar a elas o lugar que merecem.
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