A Casa nº 79
O primeiro sinal foi o gramado, diziam os vizinhos. A dona da casa era uma idosa viúva e solitária que não fazia mal a ninguém. Desde que o marido faleceu, há 11 anos, ela morava só na enorme casa 79. Raramente saia de lá e os vizinhos sempre diziam que era meio gagá. Neila tinha uma única fixação: cuidar avidamente do gramado. O da frente e o dos fundos.
Na frente um pouco mais, afinal, era o que os vizinhos observavam por cima da cerca. Cortava com precisão cirúrgica cada plantinha que teimava em nascer onde não devia. Regava e semeava grama para não aparecerem falhas. E Deus o livre se faltasse fertilizante. Naquele dia, o gramado que dormira verde e mais vivo que muita gente, amanheceu seco, quebradiço, como se um fogaréu o tivesse consumido por horas.
Só que não houve incêndio, fumaça, barulhos, nada que indicasse sinal de fogo. Muitos relatam que o grito da velha ao ver a grama daquele jeito foi torturante. Bem mais assustador que o fato em si. A rua toda ficou chocada e muitos comentavam que alguém devia ter jogado um veneno potente, que matou o gramado em questão de horas. Só por maldade. Muitas teorias foram criadas, mas o que mais se falava era o quanto aquilo era estranho.
Onze dias depois algo ainda mais estranho aconteceu. As árvores dos fundos da casa 79 amanheceram apinhadas de frutas. Estranho era o fato de terem adentrado a noite ainda começando a florescer. As frutas eram maravilhosas. Grandes, cores vibrantes e pareciam absurdamente suculentas. Rapidamente a notícia se espalhou e toda vizinhança veio ver. Agora, porém, não tinham mais teorias. Aquilo era inexplicável. Nada que ninguém conhecesse era capaz de fazer uma árvore dar flores e frutos em uma madrugada. Será que havia algo na terra capaz de tal façanha? E por que a casa da pobre velhinha tinha se tornando esse lar de acontecimentos bizarros?
Dessa vez o burburinho de antes deu lugar a um silêncio velado. Os moradores tinham medo. Alguns nem se aproximavam do jardim. Outros, mais corajosos, tocavam e até abriam as frutas. Os vizinhos contam que o que havia lá dentro fez muito marmanjo vomitar. Alguns saiam dizendo que o próprio demônio estava agindo naquelas terras. Se por fora as frutas eram lindas, por dentro exibiam cor de petróleo e uma textura que ninguém soube explicar. Mas sem dúvida o pior era o cheiro. Era de podridão, de decomposição. Como se carne humana e sangue tivessem sido fechados lá dentro por um longo tempo. A imprensa veio, os cientistas chegaram depois. Mas não houve estudo ou pesquisa que desse conta de explicar aqueles eventos.
Encostada na varanda Neila apenas observava a grama morta, com os olhos parados. Ela não crescia mais. Respondia aos repórteres, deixava as pessoas verem… Quando a imprensa partiu ela mandou que cortassem todas as árvores e delas vazou um líquido viscoso como sangue, e negro como uma noite sem luar. Reinou, então, o silêncio. Os vizinhos evitavam falar sobre os acontecimentos. Muitos trocavam de calçada. Ao contrário do que se imagina, a casa não ficou na boca do povo. Por algum motivo, ninguém queria falar dela.
Mais 11 semanas se passaram na mais perfeita calma, até que na manhã de uma sexta-feira, outro grito invadiu a vizinhança antes dos raios solares, antes mesmo do cheiro do café ou do jornaleiro. Neila saiu para o jardim com as mãos segurando a cabeça e lágrimas molhando todo rosto. Alguns vizinhos foram a seu encontro para tentar ajudar e entender o que estava acontecendo, ela, porém, não falava, apenas gemia e apontava para o interior da casa. Conta-se que os homens que entraram nela para olhar o que havia de errado, nunca mais foram os mesmos. Um deles, passou o resto da vida sentado na varanda, em uma velha cadeira de balanço, com os olhos vidrados.
Nunca mais disse uma palavra sequer. Pelo que se sabe, ao entrar na casa, os três se deparam com uma cena que assustaria até os mais criativos roteiristas de filmes de horror. Cada móvel, cada quadro, cada mínimo utensílio doméstico estava suspenso no teto sem nada que os segurasse. Como se a casa tivesse sido virada de cabeça para baixo. E não era só isso, ela apresentava um ar frio, uma temperatura quase gelada. Porém, Neila não possuía aparelho de ar-condicionado. Cada cômodo exibia uma espécie de névoa acinzentada que exalava o mesmo estranho cheiro que antes exalava das frutas e do interior das árvores. Os homens saíram da casa lívidos e abandonaram a senhora caída no jardim, sem nem ao menos olhar pra trás. E foi assim que sucessivamente, alguns moradores começaram a deixar a rua. Apenas os mais corajosos, de fé mais inabalável permaneceram para ver tudo o que ainda estaria por vir.
Deste momento em diante, que as pessoas começaram a criar um medo até de pronunciar o número da casa. Neila, sozinha e pacientemente, colocou cada cadeira e cada garfo no lugar. Sozinha. Depois sentou-se na varanda ao fim do dia e encarou o gramado enegrecido. Dizem que ela ficou assim durante toda madrugada e pela manhã voltou às suas atividades normalmente, como se absolutamente nada tivesse acontecido. Passaram a chamá-la de louca, de esquisita. Mas o que mais falavam sobre a velha, era o que ela havia feito de tão ruim para merecer tamanho sofrimento.
Mas nada, nada mesmo, se compara ao que veio depois. Os poucos moradores que restaram presenciaram cenas que, com certeza, ainda permeiam seus pesadelos à noite. Que ainda retornam às suas mentes, mesmo tanto tempo depois. As estranhezas pararam de acontecer com um espaçamento de semanas e passaram a ser diárias. Sempre no início da manhã, na mesma hora. Foram as paredes externas, telhado e cercas da casa que amanheceram pintadas de preto. Um preto diferente do já visto, parecia que a cor era nova, como uma cor que os olhos de ninguém ainda houvesse captado. Mas ainda mais estranho que isso, era o fato da tinta escorrer pelas paredes, não secar. Parecia minar dos veios da madeira. Ninguém ousou tocar, nem mesmo chegar muito perto, nem a dona da casa. Ela apenas olhou e voltou para dentro em silêncio.
Dia seguinte foi a vez dos insetos. Eles vinham de toda parte. Baratas, moscas, escorpiões e aranhas. Principalmente as aranhas. Não dava nem ao menos para enxergar o chão. Eles estavam por toda parte no jardim. Ficaram o dia inteiro assim, tomando conta de todos domínios, mas contudo, não tocavam na casa. Nem uma mosca pousou nas telhas, nem sequer uma aranha entrou nas tábuas da varanda. Eles pareciam apenas estar olhando na direção da casa. E o cheiro que deles emanava fazia qualquer um enjoar. Aliás, poucos foram os que ousaram olhar mais de perto. Mas era possível ouvir o barulho das patinhas e o som das asas das moscas que voavam, porém, sem sair do mesmo lugar. Nesse dia ninguém viu dona Neila.
Na manhã seguinte os insetos haviam partido. A desgraçada senhora saiu pela varanda com o mesmo ar perdido no olhar e regou o gramado. Calmamente ela jogou água em toda extensão do quintal, mesmo que a cada passo o barulho da grama se quebrando, de tão seca, sob seus pés, soasse alto, impossível não ser ouvido. Mas ela ignorou. Assim que terminou o trabalho inútil, entrou na residência negra, demorou alguns instantes e voltou em seguida com um copo contendo uma água acinzentada. Sentou-se na sua cadeira de madeira amarela, onde tantas vezes tinha sentado para olhar sua grama verde, ou conversar com o esposo de tantas décadas sobre as amenidades da vida e como ela era boa. Bebeu todo líquido e se recostou na cadeira, serena. Permaneceu na posição o dia inteiro, mas foi somente quando a noite ficou fria que os vizinhos perceberam que ela estava morta. Todavia ninguém ousou chegar perto para atestar o falecimento da velha. Os bombeiros foram chamados e em seguida o carro do IML compareceu ao local para retirar o cadáver. Dizem que ela foi enterrada quase como indigente, e, a exceção dos funcionários do cemitério, ninguém compareceu.
E aí, na manhã do dia seguinte algo saiu de debaixo da casa. Algo jamais visto ou imaginado por qualquer olho humano. Algo com o qual passamos a ser obrigados a conviver, contudo, jamais nos acostumamos. Onde antes existia a casa nº 79, agora dava lugar há um abismo em que não se enxergava o fundo. E assim, toda e qualquer bizarrice que aconteceu ali, passou a fazer sentido.
Na verdade, o que houve naquelas dependências passou a ser banal, se transformou na menor das atrocidades a que fomos apresentados. Muitos dizem que tudo mudou quando eles chegaram. Mas eu penso diferente, tudo mudou quando eles se revelaram, porque eles sempre estiveram aqui.
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