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[Crônica] Água pelas canelas

por Paula Alves
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Maria não conversa mais com Mario porque ele começou a namorar e a companheira é ciumenta demais para aceitar o vínculo do rapaz com a moça que o ajudou nos perrengues mais caóticos. Gabriel e Luana compartilhavam amizade sincera e produtiva. Questionavam as decisões retrogradas dos políticos brasileiros e a falta de preparo de muitos deles, opinavam sobre as lambanças de gestores do futebol, alimentavam crianças nas ruas e propunham, sempre juntos, soluções para melhoria da comunidade onde vivem. Conversas diárias transformaram-se em minguados dizeres formais, pronunciados quase sem fôlego. Vanessa, a quem João chamava de Vanessinha, arrepende-se de ter encontrado pessoalmente com o cara que lhe falava coisas afetuosas pelas redes sociais. É que depois ele mudou. “Será que é meu corpo?”, ela questiona, num silêncio que corrói qualquer alma. João sumiu e, às vezes, aparece. Pouco a pouco, aquela moça aprende que alguns desencontros são necessários. E é mesmo de partidas que a vida se constitui.

Esses são tempos penosos para aqueles que amam e percebem o outro como ser verdadeiramente humano. Vanessa acredita que João se afastou porque ele não gostou do que viu, quando, na verdade, sumiu no mapa porque é moleque, raso e encara qualquer relação feito água pelas canelas, com medo de se envolver. É menino que trata gente como copo descartável. Para João, desencontrar-se tanto faz, afinal, elos são todos iguais, é mercadoria que se troca, sem valor individual. Vanessa compreende que foi peça nula, mas sabe que, mesmo nas piores experiências, é possível aprender, conhecer mais de sua natureza, certificar-se que expor e amar são atos de coragem, reconhecidos por quem também não se sabota emocionalmente.

É de vida que estamos falando, de gente que morre sem hora programada. Perdi uma tia para o câncer. À época, numa luta tremenda, de incertezas angustiantes, pessoas que não se importavam há anos com ela decidiram dar as caras. Ora, quando ela estava boa, caminhando, vivendo dias plenos, não apareceram. Não faz sentido visitar os outros só porque eles estão com doenças malignas. Não é verdadeiro isso, é forçado, é convenção social que não quer dizer amor. Mesma coisa é lamentar depois que o corpo encontra-se debaixo de sete palmos. “Ah, mas isso é exagero!”. Não é. Tanto é real que, enquanto alguns seguem cientes que doaram tempo, respeito e consideração, outros não são mais os mesmos e remoem, remoem e remoem. “E se…”. É caro demais o preço que se paga pela prepotência e por achar que se consegue viver só, numa autossuficiência detestável.

Eu acredito nas pessoas. Pode parecer que não, mas eu acredito. Nem tudo foi para o ralo. Só que todo dia um pouco de minha esperança some. No ônibus, eu vejo cara tirando sarro da atitude da mulher que falou “em amor”. Se o rapaz lê romances de época, “é veado, amiga, foca em outro”. “É pegar sem se apegar” que fala? O negócio é contatinhos, é roleta russa de emoções. Não pode falar sobre casamento, é coisa ultrapassada. Falta mesmo é a coragem dos nossos avôs. O pai da moça tinha espingarda, cão bravo, segurança e até o bigode enrolado botava medo. Nada disso, no entanto, impedia o rapaz de “pedir a mão” da mulher. É desse desembaraço que o mundo carece. É de gente sem temor, que enfrenta a vida com a cara e a coragem.

Lembrando que os nomes citados aqui são fictícios, mas os casos são reais. Se você também conhece casos assim, deixe seu comentário. 

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