Motivos para sonhar

Que a convivência social é muito difícil não é segredo para ninguém. As diferenças culturais, pessoais, sociais, tornam as pessoas seres completamente opostos. Encontrar alguém que discorde de uma opinião que você julga verdade absoluta é quase tão fácil quanto encontrar pessoas que venerem o chocolate. O problema (ou não) é que é impossível evitar tal convivência, a não ser que você se isole numa casa e não tenha nenhuma influência externa.

Mas, como esse isolamento, na prática, é muito improvável, precisamos estar cientes de que vamos conviver com pessoas diferentes. Pessoas que diferem de você na política, na música, no cinema, na literatura, na vida. Aceite, você terá que respeitar opiniões e atitudes que não lhe agradam. Ao menos uma vez, experimente uma coisa: saia de casa com a mente aberta e tente encontrar as diferenças e particularidades de pessoas desconhecidas que passam por você na ida e vinda do cotidiano. Observe! Alguns lugares favorecem essa observação. 

Naquele dia, saí de casa no tradicional horário, mas não coloquei os fones no ouvido. O objetivo durante aquele rotineiro trajeto era apenas observar, ver o comportamento humano, reparar nas pessoas. Ainda no ponto de ônibus, vi pessoas com expressões cansadas, começando o dia já na expectativa de seu fim. Era uma quinta-feira e o fim de semana já estava próximo. Algumas delas estavam impacientes com o atraso dos ônibus. Uma mulher repetia a cada cinco minutos: “vou me atrasar de novo. Esses motoristas nunca cumprem o horário”.

O ônibus que me levaria ao trabalho não tardou a passar. Tentei não perder nenhum detalhe, reparar no máximo de pessoas que eu pudesse. Tomando sempre o cuidado para não ser invasiva ou indelicada. A maioria das pessoas estava de olhos fechados, algumas até dormiam. Outras, conversavam animadamente com um bom humor matinal admirável.

Me sentei ao lado de uma senhora que aparentava uns 60 anos. Séria, ela tinha o olhar perdido na paisagem urbana que se transformava a medida que o ônibus se locomovia. Mesmo fazendo um calor abafado, um pouco sufocante, ela vestia uma blusa de manga comprida que cobria seus braços rechonchudos. A observei pelo canto do olho por alguns minutos, ela mal se movia. Quis saber um pouco mais sobre ela, mas não tive coragem de perguntar. Não me pareceu que ela queria papo comigo.

Um resmungar baixinho chamou minha atenção e meus olhos se voltaram para uma menina com um bebê no colo. Ela estava dois bancos na minha frente, mas do outro lado do corredor. Daquela distância não conseguia observá-la muito bem. A criança começou a chorar e eu permaneci com os olhos fixos naquela cena. Passaram-se alguns minutos, a campainha do ônibus foi acionada e o rapaz que estava do lado da jovem se levantou para descer. Sem pensar duas vezes, me levantei, deixei a senhora de braços gordinhos sozinha e fui me sentar ao lado da jovem, que agora estava sentada no canto, havia tomado o lugar do rapaz que desceu. A criança estava mais calma, mas ainda se mexia bastante. Nunca fui muito boa em saber como acalmar uma criança e a jovem parecia ter o mesmo problema que eu. Queria saber mais sobre aquela mãe e seu bebê. Ela parecia ter uns 16 anos. Perguntei o nome do bebê. “Isabel”, ela me respondeu. Não sorriu, mas senti simpatia naquele olhar. Ela parecia precisar de ajuda para lidar com o ele, que ainda resmungava e agora parecia que iria voltar a chorar. “Que bebê lindo”, eu disse. “Qual a idade?”. “18 dias”, ela respondeu”.

Pensei em mim aos 16. Uma das melhores alunas da sala, chamada de nerd pelos coleguinhas chatos, aparelho nos dentes, tranças no cabelo. O que eu queria naquela idade era tirar notas sempre boas, deixar meus pais orgulhosos, ler livros e visitar minha avó. Pensando nisso naquele momento, me senti estranha. Comparada com aquela menina, eu era uma criança aos 16. Tinha pouquíssimas responsabilidades. Aquela garota tinha um bebê que dependia dela para tudo e ela não me pareceu saber ao certo o que fazer.

Começamos a conversar e em poucos minutos fiquei sabendo que ela havia engravidado aos 15 anos de um namoradinho que já não via fazia uns meses. Ela me contou que não terminou a 7ª série e que ler e escrever era uma tarefa bastante difícil. Não teve instrução dos pais, não teve incentivo na vida e se sentia sozinha. Aquele ônibus estava levando-a para a casa de uma tia, que havia prometido ajudá-la com o bebê para que ela pudesse procurar um emprego. Seu sonho era ser psicóloga, queria entender melhor as pessoas, queria ajudar as que estivessem em situações difíceis, tais como a que ela vivia naquele momento. Ela acreditava num futuro, mesmo sabendo que ele demoraria a se realizar.

Aquela conversa me tocou. Meu ponto chegou, desci do ônibus. Demorei dias para tirar de mim aquela sensação de angústia. Fiquei com uma vontade enorme de ajudar aquela menina. Me senti impotente. Mas o que mais me deixou feliz em meio àquela história foi ver nos olhos daquela menina de 16 anos que ela acreditava num futuro melhor, numa vida de sonhos realizados. Ela me fez acreditar que era possível. E eu… sigo com o mesmo otimismo que ela me passou. Sigo com meus pensamentos naquele dia, naquela menina que, mesmo sem querer, me deu motivos ainda maiores para acreditar nos sonhos.

Todo mundo tem uma história no ônibus. Conta pra gente! Envie um e-mail para contato@literalmenteuai.com.br

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